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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Ex-ministros e intelectuais defendem Lula por apoiar denúncia contra Israel por genocídio (FSP)

 Ex-ministros e intelectuais defendem Lula por apoiar denúncia contra Israel por genocídio

Folha de S. Paulo, 17/01/2024

 Carta será envida ao presidente e ao ministro Mauro Vieira Intelectuais, ex-ministros e ativistas elaboraram uma carta aberta em apoio à decisão do governo Lula de endossar a iniciativa da África do Sul em acionar a Corte Internacional de Justiça da ONU contra Israel. O país pede que seja apurada a suposta prática de genocídio pelo Estado judeu contra o povo palestino em Gaza. O documento será enviado, entre a noite desta terça (15) e a manhã de quarta-feira (16), ao presidente e ao ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira. 

Entre os signatários estão os ex-ministros dos Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, Paulo Vannuchi, Rogério Sottili e Maria do Rosário (hoje deputada federal) e da Defesa José Viegas Filho. Ainda apoiam a carta o ex-diretor-executivo da Humans Right Watch Kenneth Roth, o ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) James Cavallaro, a filósofa Marilena Chauí, o escritor Milton Hatoum, o jornalista Breno Altman e a socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides. A ação da África do Sul foi apresentada ao tribunal, mais conhecido como Corte de Haia, no último dia 29. 

O apoio do Brasil foi divulgado em 10 de janeiro, horas depois de Lula ter se reunido com o embaixador palestino no Brasil, Ibrahim Alzeben. A carta rebate críticas que o governo recebeu de entidades como a Conib (Confederação Israelita do Brasil), que disse, em nota que o governo diverge da posição de equilíbrio e moderação da política externa do país. "Não há incoerência alguma na diplomacia brasileira. Essas críticas ignoram que o Estado brasileiro tem se guiado, nas relações internacionais, pela primazia do respeito aos direitos humanos, conforme o artigo 4º da Constituição de 1988", diz um trecho do manifesto em apoio ao petista. "A acusação de reforçar o antissemitismo faz parte da campanha de instrumentalização política do termo, ao considerar qualquer crítica ao Estado de Israel e seu governo como antissemita. 

O antissemitismo é um flagelo perigoso e deve ser combatido vigorosamente. Mas não significa ser antissemita condenar o apartheid e o desrespeito sistemático, por Israel, das decisões dos órgaõs da ONU e de leis internacionais humanitárias e de direitos humanos, incluindo a não prevenção de genocídio", afirma ainda. 

sábado, 29 de outubro de 2022

Os intelectuais do Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida (1999)

 Os intelectuais do Itamaraty


 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 agosto 1999, 2 p.

Elementos de informação sobre os “intelectuais” do Itamaraty, a pedido de um jornalista

 

 

Quem é exatamente e o que faz, hoje em dia, o diplomata brasileiro? Para começar, ele não mais será mais, majoritariamente, “o” diplomata, pois desde alguns anos um número cada vez maior de mulheres resolveu ingressar na “carrière”, assim como também a proporção dos jovens de boa família — vale dizer, os representantes refinados das antigas elites oligárquicas do passado — tende a equiparar-se à de jovens de classe média, como ocorre aliás com qualquer outra profissão “normal”. Reconhecidamente, o diplomata brasileiro do limiar do século XXI ostenta pouca semelhança com seu homólogo supostamente em “punhos de renda” do começo do século XX. A chamada “diplomacia ornamental e aristocrática” há muito tempo ficou para trás, soterrada pela mesma tendência à burocratização e à tecnocracia que caracterizam quase todos os serviços do Estado nas democracias modernas. 

Os diplomatas, a bem da verdade, foram a primeira categoria do funcionalismo público a se submeterem a regras de recrutamento profissionalizado — desde 1939 pelo DASP e a partir de 1945 pelo Instituto Rio Branco —, superando a seleção algo arbitrária de outros estratos funcionais ou a que vigorava entre os próprios diplomatas da época do barão do Rio Branco, no começo do século. Os exames são comprovadamente rigorosos — a “hecatombe” entre o número de inscritos, em torno de 2700 a cada ano, e o dos sobreviventes, aproximadamente 25 apenas, o prova — e o antigo viés elitista marcado pela exigência do francês foi eliminado há cerca de dois anos. Mas não se considere por aí que os novos recrutados tenham se equiparado à média do funcionalismo brasileiro, cujos padrões são altamente desiguais, dependendo da categoria. O diplomata brasileiro continua a ser, antes de mais nada, o mais “intelectualizado” representante da burocracia pública, uma espécie de “ilha de excelência” no mar nem sempre muito azul da competência estatal. 

Os exemplos dessa “intelligentsia” diplomática abundam, bastando citar, por exemplo, o falecido crítico literário e polemista político José Guilherme Merquior, o filósofo e ex-ministro da Cultura — hoje embaixador em Praga — Sérgio Paulo Rouanet, o saboroso articulista (e ex-ministro da Fazenda) Rubens Ricupero, atual secretário-geral da UNCTAD em Genebra, o fecundo historiador Evaldo Cabral de Melo, especializado na história regional do Nordeste seiscentista, assim como muitos outros da jovem geração. 


Brasilia, 18/08/1999

segunda-feira, 8 de março de 2021

Le Débat: fim de uma revista de esquerda inteligente: fim de uma era intelectual na França? - Christopher Caldwell (NYT)

Opinion

Is This the End of French Intellectual Life?

The country’s culture of argument has come under the sway of a more ideological, more identity-focused model imported from the United States.

Mr. Caldwell is a contributing opinion writer and the author of “Reflections on the Revolution In Europe: Immigration, Islam and the West” and “The Age of Entitlement: America Since the Sixties.”

The New York Times, March 5, 2021



At the end of last summer, Le Débat, France’s most prestigious intellectual review, accompanied its 40th-anniversary issue with a wholly unexpected announcement: It would cease publication forthwith. Le Débat and its three or four thousand loyal readers had maintained an allegiance to the political left since the Cold War — but the meaning of “left” has been shifting. Rivals now claim the term, particularly social movements that arose in France in the 1980s to champion what is variously called identity politics or social justice. After waging a decades-long twilight struggle against these movements, Le Débat has lost.

Intellectuals of all persuasions have been debating what that defeat means for France, and they have reached a conclusion: The country’s intellectual life has come under the sway of a more ideological, more identity-focused model imported from the United States.

Le Débat was always resistant to American imports. It never fully made its peace with the free market in the way that self-described social democrats in America did under Bill Clinton. Nor did it climb aboard the agenda of humanitarian invasions and democracy promotion, as left-leaning American intellectuals like Paul Berman and George Packer did. That was all fine. But Le Débat’s reluctance to partake of identity politics as it arose in France, always a couple of steps behind (and always in imitation of) American civil rights advances, brought the review into disrepute with a new generation of leftists.

Many French people see American-style social-justice politics as a change for the worse. President Emmanuel Macron does. In the wake of the death of George Floyd in police custody last spring, protests and riots across America brought the dismantling of statues and other public symbols — sometimes on the spot, sometimes after further campaigning and agitation. Aware that such actions had found a sympathetic echo among some of his fellow citizens, Mr. Macron warned that France would not follow suit. “It will not erase any trace or name from its history,” he said. “It will not forget any of its works. It will not topple any statues.”

By last fall Mr. Macron was also inveighing against foreign university traditions. “I’m thinking of the Anglo-Saxon tradition, which has another history, and it is not ours,” he said, before singling out “certain social-science theories imported from the United States of America.”

To look at how Le Débat unraveled is to see that these tensions have been developing for years, if not decades. They bode poorly for the future of intellectual life in France — and elsewhere.

Sponsored by the book publisher Gallimard, Le Débat was political and literary, but the heart of its mission was that very French kind of thinking where social science and philosophy meet. The philosopher Michel Foucault and the anthropologist Claude Lévi-Strauss were early contributors. Its founding editor, Pierre Nora, is a pioneering historian of French cultural memory and an editor of genius (he was Mr. Foucault’s editor at Gallimard). Its chief editor, Marcel Gauchet, is a philosopher of democracy and a historian of religion. Totalitarianism, and how to find a politics of the left that avoided it, absorbed Mr. Nora and Mr. Gauchet both.

Mr. Gauchet, for instance, has studied with alarm the slow ouster of democratic principles by the very different principles of human rights. “The touchstone in the system,” he warned in 2007, “is no longer the sovereignty of the people but the sovereignty of the individual, defined, ultimately, by the possibility of overruling the collective authority.” Human rights, often imposed by courts or centralized administrative bodies, could wind up pitting democracy against itself. Back in 2007, Mr. Gauchet’s view, whether or not one agreed with it, would have been accorded a basic legitimacy. It has become less sayable in the wake of a decade’s worth of bitter arguments over gay marriage and immigration.

Pierre Nora, the founding editor of Le Débat.
Credit...Raphael Gaillarde/Gamma-Rapho, via Getty Images
Marcel Gauchet, Le Débat’s chief editor.
Credit...Baltel/SIPA, via Associated Press

The first sign in France of a politics focused on minority groups came in 1984. Activists close to the government of François Mitterrand sought to address the complex problem of assimilating France’s mostly North African immigrants by founding an American-style activist group called SOS Racisme. Le Débat reacted in 1993 by publishing a skeptical book by the sociologist Paul Yonnet. SOS Racisme was not replacing a stuffy idea of race with a hip one, Mr. Yonnet argued; it was introducing race theories into a country where they had lately been weak or absent, ethnicizing newcomers and natives alike, and encouraging the French to look at the minority groups in their midst (Jews, in particular) as somehow foreign.

Among the French left, Mr. Yonnet’s very French egalitarianism was thought hard-line by some (and perhaps hardhearted by others), but not necessarily conservative. It came as a shock when, in 2002, the political scientist Daniel Lindenberg published a book that described some of the country’s leading thinkers — the philosophers Alain Finkielkraut and Pierre Manent, the novelist Michel Houellebecq — as “reactionaries” for their reservations about France’s prospects of managing a multicultural and increasingly Islamic society. The writers of Le Débat, especially Mr. Gauchet and Mr. Yonnet, were prominent among those Mr. Lindenberg held responsible for an unhealthy “lifting of taboos” — taboos that had made the country a welcoming place for minority groups of all kinds.

That wasn’t really fair. Le Débat, for better or for worse, carried into the 21st century all the postwar taboos with which it had been founded in 1980. When one of its most daring and versatile authors, the economist Hervé Juvin, began writing provocatively about ethnic diversity and drawing closer to the far-right National Front party, the magazine respectfully severed relations with him.

But France was changing. In 2004 the sometime Débat contributor Olivier Pétré-Grenouilleau wrote a global history of the slave trade that included accounts not just of European but also of Arab and intra-African slave markets. Amid accusations that such a wide-ranging account minimized European culpability in the trans-Atlantic slave trade, he was sued for historical revisionism under one of France’s proliferating anti-defamation laws.

In 2014, after Mr. Gauchet, the Débat editor, had been invited to give the opening lecture at a “history rendezvous” in the city of Blois, the sociologist Geoffroy de Lagasnerie and the novelist Édouard Louis called for a boycott of the event on the grounds that Mr. Gauchet was involved. Two hundred historians signed on to a condemnation of Mr. Gauchet’s writings as “ultraconservative” and “skeptical of the imperative of respect for human rights.”

Last year, student activists blocked Sylviane Agacinski, a philosopher and occasional Débat contributor, from speaking at the University of Bordeaux on the grounds that her philosophical work on the integrity and non-commercializability of the body, including her opposition to surrogate motherhood, made her a “notorious homophobe.” The accusation is not quite as devoid of logic as it sounds: If male homosexual couples are to have children, some woman will need to bear them. Still, this was an odd epithet to stick on a woman who supported gay marriage and is married to the man, the former Socialist Prime Minister Lionel Jospin, who in 1999 passed the first bill in the country creating civil unions for which same-sex couples were eligible.

Mr. Gauchet, Ms. Agacinski and many others in their intellectual circle have not changed their politics. Rather they have been outbid by radicals offering a more exciting, if not necessarily more rigorous, critique of society.

With Le Débat dead, its critics on the left are shedding few tears, having viewed the publication less as a venue for ideas to be argued with and more as an obstacle in the way of social justice. The historian Ludovine Bantigny, interviewed about the demise of Le Débat, had no pieties to spare about the marketplace of ideas. “By repeating that there’s a problem with immigration in France,” she said, “by waving around this so-called ideologization of human rights to question the legitimacy of new rights and by relaying the arguments of the Manif Pour Tous” — a movement against gay marriage — “the way Gauchet did, you wind up legitimizing magazines like Causeur or Valeurs Actuelles.”

Ms. Bantigny’s allusion to the “legitimacy” of these two very different magazines was curious. Causeur is a spirited monthly barely a decade old, edited by disillusioned anti-multicultural liberals; Valeurs Actuelles is a long-established archconservative newsmagazine on the Time/Newsweek model. Apparently one no longer debates the things written in magazines. One questions the “legitimacy” of the magazines themselves. Where did this very un-French attitude come from?

The editors of Le Débat have an answer: America. A few days after announcing that the review would publish no more, Mr. Nora spoke about its closing on Alain Finkielkraut’s radio show. Mr. Finkielkraut was pointing to disturbing tendencies in French intellectual life, but Mr. Nora wanted to take the conversation in a different direction: to the “mouvements à l’américaine” that start on campuses across the ocean and tend to show up in France. “What they call,” he said, “to follow the argument to its logical conclusion, cancel culture, which is to say the extermination of culture, the will to. …”

Here Mr. Nora paused before continuing: “Anyway, I daresay some of us are old enough to have echoes in our heads of Goebbels when he said, ‘When I hear the word “culture” I reach for my revolver.’”

The Goebbels quote may be apocryphal, but it is worth pausing to ask why Mr. Nora — born in the first half of the 20th century and preoccupied with the moral legacy of World War II — should call such a name to mind when discussing the influence of American culture on his own country’s.

“There is a mighty ideological wave coming from the United States,” the philosopher Yves Charles Zarka wrote last fall in an article about the death of Le Débat. “It brings rewriting history, censuring literature, toppling statues, and imposing a racialist vision of society.” Nor is it as iconoclastic as it looks, according to Luc Ferry, a philosopher and conservative columnist. “However anticapitalist and anti-American they may think themselves,” he wrote last year, “these activists are only aping whatever has been going on on campuses across the Atlantic over the last four decades.”

The shoe used to be on the other foot. The United States used to learn a lot from France. Until a generation ago, into the age of Michel Foucault and Jacques Derrida, one could say America deferred to France on matters intellectual. It doesn’t any longer. The demise of Le Débat was marked by not a single mention in any major American newspaper or magazine.

There are still lessons Americans can learn from France, provided we approach it with the right questions in mind. A good one to start with might be whether the American academy of recent decades — with the culture it carries and the political behaviors it fosters — has been, in the wider world, a force for intellectual freedom or for its opposite.

The Times is committed to publishing a diversity of letters to the editor. We’d like to hear what you think about this or any of our articles. Here are some tips. And here’s our email: letters@nytimes.com.

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Christopher Caldwell is a contributing opinion writer for The New York Times and a contributing editor at The Claremont Review of Books. He is the author of “Reflections on the Revolution in Europe: Immigration, Islam and the West” and “The Age of Entitlement: America Since the Sixties.” 

A version of this article appears in print on March 7, 2021, Section SR, Page 4 of the New York edition with the headline: Is This the End of French Intellectual Life?. Order Reprints | Today’s Paper | Subscribe

 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Economia politica do intelectual - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Reproduzindo um artigo de 13 anos atrás, talvez ainda válido.


Economia política do intelectual

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2006
Revista digital Espaço Acadêmico (ano 6, n. 63, agosto 2006)


Pretendo, nestas breves considerações em torno da economia política dos intelectuais, oferecer uma visão cética, ou pelo menos crítica, sobre alguns dos mitos da nossa época, entre eles o do intelectual público enquanto figura de proa dos movimentos vanguardistas, ou progressistas, e portanto, uma figura isenta que encarna, supostamente, os melhores valores da racionalidade e do humanismo. Ainda que tudo isso possa ser justificado, em bases racionais, ou legitimado socialmente, nenhuma restrição de ordem conceitual ou filosófica deveria nos impedir de examinar essa figura ímpar da modernidade – mas, na verdade, eles não são tão modernos assim, nem tão excepcionais quanto se quer fazer acreditar –, tendo como base analítica essencial a relação de custo-benefício que eles costumam apresentar para a sociedade e como único critério de avaliação, a dissecação sem compaixão desse obscuro objeto de admiração (por vezes indevida).

1. Certidão de nascimento ou temporalidade difusa?
Não é verdade que o intelectual público seja um produto da nossa época, como pretendem alguns. Obviamente, os que defendem tal posição adotam a visão francesa do intelectual e têm até uma data para esse “nascimento”: a publicação do panfleto J’accuse, na verdade uma carta aberta que o escritor francês Émile Zola enviou ao presidente Félix Faure a propósito do processo Dreyfus. Publicado no jornal L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898, o panfleto acusava o comando militar francês de conivência com erros criminosos no processo instaurado contra o capitão Alfred Dreyfus, injustamente condenado por traição à pátria e espionagem a serviço do inimigo alemão. Aí teria nascido, segundo os defensores dessa versão “moderna” do personagem, o intelectual público contemporâneo.
Altamente questionável essa visão e monopólio gauleses do intelectual. Talvez devêssemos recuar um pouco esse nascimento e falar, por exemplo, dos enciclopedistas do século XVIII, ou dos ingleses e escoceses do período da guerra civil, John Locke ou Thomas Hobbes, ou então do protótipo do conselheiro do príncipe, isto é, Maquiavel em pessoa. Mais um pouco – passando pela Idade Média, com tantos personagens brilhantes, como Avicena, Averroes, Maimonides e Tomás de Aquino – chegaríamos à antiguidade clássica, com Sócrates e Platão. Existem muitos outros exemplos, é claro, mas minha intenção não é a de retraçar as origens e desenvolvimento dos intelectuais ao longo da história, mas tão simplesmente a de fazer uma breve análise econômica das condições de produção, reprodução, circulação, acumulação e eventual falsificação desse personagem, nas condições modernas e brasileiras e também numa perspectiva crítica em relação aos possíveis defeitos desse “produto”, que está quase virando uma commodity, sob o império – é o caso de se aplicar o conceito – da globalização avassaladora.

2. Natureza do produto e valor agregado: ativos tangíveis e intangíveis
O intelectual pode ser definido como sendo, essencialmente, um produtor de saber ou, pelo menos, de ideias (nem sempre originais). Não qualquer saber, nem quaisquer ideias, que estariam disponíveis ao comum dos universitários – que eles, sim, são uma commodity –, mas um saber especializado e ideias supostamente únicas e aparentemente originais, pretensamente refinadas e dotadas de virtudes eventualmente “explicativas” do mundo real e “propositivas” de novas vias para se abordar os problemas do mundo real.
Seria isso verdade? Provavelmente não, ou então sim, mas de uma forma muito restritiva, pois a maior parte dos pretensos intelectuais não produz qualquer saber original – no sentido de elevar o estoque de conhecimento humano a patamares superiores de criatividade e inovação –, atuando mais como “porta-vozes” dos setores educados da população, sendo, por isso mesmo, requisitados pelos meios de comunicação para pontificar sobre esta ou aquela matéria. Estou obviamente referindo-me a alguns dos ilustres pontífices das ciências humanas, uma vez que os cientistas, que são os verdadeiros inovadores em nossa civilização tecnológica, não são habitualmente considerados como intelectuais, mas como meros produtores de um “saber instrumental”. Fiquemos, portanto, nesse estamento mais reduzido de “processadores de ideias humanísticas” para traçarmos uma breve economia política do intelectual.
O intelectual é um produto do seu meio, mas ele traz um valor agregado, o que os marxistas chamariam de “mais valia”, no sentido em que ele é capaz de acrescentar novos significados a velhos saberes, travestindo conceitos antigos sob novas roupagens, o que o transforma em um personagem próximo do prestidigitador. Atenção!: ele não um mero enganador, um embromador com ideias alheias. Não!: ele apenas recupera parte do conhecimento disponível em seu meio social e ambiente cultural e o apresenta de maneira relativamente inédita, o que em latim – sim, os intelectuais deveriam, em princípio, saber latim, tanto quanto grego antigo e inglês, essa novilíngua dos bárbaros da globalização – se traduz por “non nova, sed nove”, ou seja, não inteiramente novo, mas de forma nova.
A maior parte dos ativos do intelectual, o que seria o seu valor agregado pessoal, é constituída de intangíveis, matéria volátil como o calor dos sentidos e a luz das ideias, ainda que não se possa excluir que o intelectual também ande armado de um grande porrete, para eventualmente melhor enfiar suas ideias nas cabeças dos adversários. Nos tempos de Niccolò Machiavelli, por exemplo, a adaga era um instrumento fundamental de trabalho, tanto quanto os venenos pouco perceptíveis e as bolsas com ducados e fiorinos: a defesa pessoal, as conspirações e a compra de espiões, ou mesmo de possíveis adversários, figuravam no arsenal “intelectual” de qualquer condottiere ou candidato a príncipe por um dia. As armas enferrujam, venenos desaparecem, o dinheiro é dilapidado, mas o que fica são as ideias intangíveis dos intelectuais, que movimentaram líderes políticos ambiciosos, que por sua vez mobilizaram exércitos inteiros de mercenários – ou seriam militantes? – para defender suas causas, ou, mais exatamente, suas propriedades (que ainda não foram conquistadas, obviamente).

3. Volatilidade e imperfeição dos mercados intelectuais
Nosso intelectual atua em mercados imperfeitos, como são, aliás, a maior parte dos mercados de bens e serviços. Esse mercado é dominado por um número menor de “vacas sagradas” e muitos outros candidatos a um nicho nesse mercado altamente volátil, mas caracterizado por alguns ciclos perfeitamente definíveis. Esses ciclos obviamente têm a ver com a oferta e a demanda de “ideias úteis” para a sociedade. Nem todas as ideias são úteis o tempo todo, nem as supostas “utilidades” que se possa extrair de certas propostas “intelectuais” conformam, de fato, ideias originais que configurem uma melhor situação de “bem estar” para o conjunto da sociedade. Determinadas “ideias” de intelectuais reputados podem aparentar uma promessa de bem estar superior, mas na verdade representam, no entrechoque de sua implementação prática, uma diminuição do retorno real, aquilo que os economistas chamam de “maximização da satisfação”. 
O mercado dos intelectuais “marxistas”, por exemplo, já conheceu tempos melhores, quando as ações cotadas no nome do criador da seita – que digo?, uma religião, com todos os rituais a que ela têm direito – conheciam grande demanda e um alto “valor de troca”, valorizando-se indevidamente, portanto (pelo menos em relação ao seu “valor de uso” real, sobretudo nas sociedades do capitalismo avançado). Depois, elas saíram de moda, seus papéis despencaram – as ações do socialismo de tipo soviético, por exemplo, deixaram de ter cotação – e só tinham procura nos mercados periféricos, onde as ideias aparentemente circulam tardiamente ou estão sempre fora do lugar. A manutenção da demanda agregada para esse tipo de papel, em todo caso, só ocorreu nas universidades públicas, conhecidas pela imperfeição ainda maior dos seus mercados de ideias.
Os papéis liberais, em contrapartida, chegaram ao fundo do poço durante a longa dominação do keynesianismo doutrinal e do planejamento indicativo em quase todas as economias de mercado desenvolvidas. Durante o longo período que vai dos anos 1940 aos 80 do século XX, eles praticamente não tiveram cotação nas bolsas do pensamento econômico, ficando restritos – e basicamente escondidos – em alguns poucos bastiões do academicismo conservador, como Chicago ou a escola de Viena, limitada a alguns saudosistas da belle époque. Voltaram em peso no pregão das ideias na moda a partir dos anos 1980, sob o travestimento de “papéis neoliberais”, mas, de fato, as ações mais procuradas ainda pertenciam ao liberalismo clássico, como os títulos “Von Mises” ou os blue chips “Friedrich Hayek”.
Quanto às regras do “consenso de Washington”, contrariamente ao que parecem crer alguns neófitos do mercado de ideias – sempre existem inexperientes ou aventureiros nesse tipo de negócio –, elas não representam, na verdade, ações “neoliberais”, mas tão simplesmente um conjunto de propostas pragmáticas, visando oferecer prescrições macro e microeconômicas para ajudar os turbulentos mercados latino-americanos a superar as duras tarefas dos ajustes emergenciais e a encontrar novos patamares de estabilidade. O mercado para elas foi ingrato, submetidas que foram a fortes ataques especulativos dos antiglobalizadores – alguns preferindo ser chamados de “desenvolvimentistas” –, o que fez oscilar erraticamente os seus preços, trazendo pouca demanda a esse nicho restrito do mercado de ideias práticas.

4. Um tipo específico de intelectual: a “vaca sagrada”
Volto, agora, ao problema das “vacas sagradas” e às suas ideias eventualmente nocivas à sociedade em que vivem ou a que servem. Contrariamente ao que alguns podem crer, eles não são naturais da Índia, nem têm algo a ver com o planejamento estatal que foi a característica mais marcante daquele país durante suas décadas de baixo crescimento e de isolamento dos mercados globais. Nossa vaca sagrada também pode ser um planejador, mas ele é, sobretudo, um vendedor de ideias mortas. Qual é a minha noção de “vaca sagrada”?
Vacas-sagradas são aquelas pessoas que atingiram tal grau de excelência em suas áreas respectivas, que elas se tornam verdadeiras referências para o campo de estudos ou de atividades a que elas se dedicam. Viram mitos, pessoas inatingíveis e inatacáveis e tudo o que elas dizem – o que pode eventualmente incluir coisas anódinas ou até besteiras completas – é acatado com todo o respeito, vem repetido na imprensa e acaba sendo aceito com toda a reverência que essas vacas-sagradas merecem, por vezes indevidamente, e que elas exibem com certa arrogância na vida diária.
Eu – anarquista e iconoclasta que sempre fui – considero pessoalmente uma pena esse respeito indevido de que gozam as “vacas sagradas”, uma vez que esse acatamento reverencial por parte dos “candidatos” a intelectuais pode ser nefasto à “circulação” de novas ideias. Sim, pela boa e simples razão de que as verdadeiras vacas sagradas, por definição, ostentam velhas ideias, congeladas no tempo, que elas (as vacas, não as ideias) continuam a estender e dispensar aos discípulos como quem se esforça por espalhar os últimos restos do pote de geleia num pedaço muito grande de pão. Com isso, algumas dessas vacas-sagradas podem fazer muito mal a um país.
Considerem, por exemplo, este depoimento de uma das maiores vacas sagradas de todos os tempos, o finado economista Celso Furtado, no qual ele diz que o Brasil está dominado pelo neoliberalismo e que a “coisa microeconômica é um disparate completo”. Em depoimento prestado em agosto de 2004, poucos meses antes de morrer, ele disse exatamente o seguinte: “A hegemonia do pensamento neoclássico-neoliberal acabou com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento governamental, então, nem se fala... O Brasil precisa se pensar de novo, partir para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política. Essa coisa microeconômica é um disparate completo.” (Maria Inês Nassif, “O CDES e o consenso que não é neoliberal”, jornal Valor Econômico, 13/07/2006).
É realmente uma pena que a nossa maior vaca sagrada pensasse assim, pois o dinheiro da sua aposentadoria, o de todas as outras aposentadorias, aliás, todo o dinheiro que movimenta e sustenta o governo, assim como a qualquer outra pessoa no Brasil e no mundo, toda a riqueza que movimenta as relações, em quaisquer instâncias que se possa conceber, tudo isso deriva dessa “coisa microeconômica” tão desprezada e vilipendiada por Celso Furtado. Sem ela, não haveria empregos, renda e riqueza, pois é evidente que é a microeconomia que produz todo e qualquer valor na sociedade – o que Marx sabia muito bem – uma vez que a famosa macroeconomia – tão apreciada pelos keynesianos e por toda a torcida de economistas desenvolvimentistas – apenas se dedica, pura e simplesmente, à singela organização das melhores condições possíveis para o exercício de uma boa microeconomia pelos agentes econômicos. Não acredito que os economistas keynesianos pensem que governos sejam capazes de criar valor, ou que eles retiram dinheiro a partir do nada, como se fosse de uma lâmpada mágica. Até os economistas desenvolvimentistas sabem perfeitamente que são os produtores diretos, os agentes microeconômicos, tão desprezados por Celso Furtado, os ÚNICOS que criam valor numa sociedade.
Mas deixemos as vacas sagradas em paz para voltarmos aos nossos intelectuais de mercado. Nossa economia política ainda não acabou...

5. Intelectuais de marca ou genéricos?
Existem muitos modelos de intelectuais, alguns ostentando marcas de prestígio, outros sendo simples genéricos, como ocorre, aliás, com a maior parte dos universitários. Os primeiros custam mais caro, ou melhor, cobram mais caro do que a média do mercado para trabalhadores não-manuais, mas, como no caso das ações “marxistas”, seu valor de troca encontra-se indevidamente valorizado em relação ao seu efetivo “valor de uso”. Et pour cause: poucas de suas “ideias” são implementáveis de fato, consistindo, no mais das vezes, de prescrições quiméricas – só imagináveis por quem vive na torre de marfim, sem qualquer contato com as linhas de montagem ou as seções de contabilidade das firmas –, além de considerações genéricas do tipo “o que falta ao país é um projeto estratégico nacional” (proposição tão ingênua quanto inexequível, em condições democráticas).
Os intelectuais “genéricos”, em contrapartida, não costumam propor um “projeto nacional” pronto e acabado, contentando-se com comentários pretensamente profundos sobre temas do momento, a partir de frases de colegas de “marca” ou de algumas figuras do passado (as “vacas sagradas”, justamente, que se tornam ainda mais míticas do que já eram). Com os progressos da globalização, e a disseminação fácil das ideias geniais – a maior parte agora disponível num simples clicar de “cut-and-paste” – os intelectuais de marca se tornam cada vez mais genéricos – pois que amplamente disseminados nas engrenagens da tecnologia da informação – e os genéricos, por sua vez, podem aspirar a ter seus quinze minutos de fama, como se fossem uma marca legítima.
Atenção: se você pretende ser um legítimo intelectual de marca, não generalize as suas ideias, em todo caso, não antes de registrá-las em algum suporte comercial, devidamente protegido pela legislação de propriedade intelectual, o que lhe poderá assegurar não apenas o monopólio de continuar explorando aquelas ideias – ou pelo menos a forma em que foram expressas – durante bastante tempo, recolhendo no caminho alguns bons royalties pela circulação dessas ideias porventura geniais (não precisam ser, basta que tenham um ar de sê-lo). 

6. A substituição de importações intelectuais no caso brasileiro
O intelectual, no Brasil, sempre foi um produto importado, não vindo no porão dos navios, como o bacalhau, o azeite e vinho, mas na coberta das caravelas, veleiros e outros transportes que faziam o trajeto da metrópole, que era onde se dispensavam os saberes d’antanho. Muito antigamente eles vinham de Coimbra, depois essas importações foram amplamente diversificadas, com muitos saberes em várias línguas, mas com a predileção especial por Paris e seus modismos intelectuais. Apesar da decadência francesa em todas as coisas mais vis que possa haver no mundo, commodities, mercadorias ordinárias e outras bugigangas, é da França, e mais especificamente de Paris, que ainda provêm, junto com perfume e as roupas da moda burguesa, as ideias que constituem le dernier cri dos nossos intelectuais.
Aparentemente, toda a filosofia uspiana é uma demoiselle que aqui aportou depois de um long séjour parisien, como se estivesse num département d’outre mer. N’importe, o fato é que nós já fizemos nossa substituição de importações no terreno das ciências sociais, aliás com ideias, conceitos e metodologias que falavam inglês – vindas com os famosos brazilianists dos anos 1960 e 1970 – e não precisaríamos mais importar essas ideias francesas que só servem mesmo para a França, pois são tão específicas daquela cultura como o foie-gras, o camembert, o reblochon. Aliás, desde que aqui começou a se fazer o legítimo conhaque – sim, com “que”, sem “c” – de alcatrão de São João da Barra, no distante século XIX, que não precisaríamos mais importar ideias francesas, superadas que elas deveriam estar por nossa genialidade adaptativa e imensa capacidade de digerir e reproduzir o que há de mais avançado no mundo das ideias.
Mas, qual o quê! Nossos intelectuais são preguiçosos: eles não se dedicam a criar ideias próprias e continuam a consumir ideias francesas que na atualidade vêm mais em modelos prêt-à-porter do que sob a forma elegante do fait-à-la-main. É por isso que nossos alunos universitários continuam a ser torturados pelos Derridas de aluguel, pelos Lacan de contrabando, pelos Foucault de um imaginário que não tem muita imaginação. Vejam vocês que eu já encontrei estudos sociológicos sobre os nossos garimpeiros – sim, aqueles seres brutos que despejam mercúrio na natureza e usam as pepitas para comprar o amor das donzelas disponíveis – elaborados com a mais refinada técnica foucaultiana, como se não fosse possível analisar o imaginário rude desses seres singulares das nossas fronteiras da civilização, a não ser com tecnologia importada de Paris. Épatant, n’est-ce-pas?
Quero crer que a substituição de importações já se completou no caso das nossas ciências sociais e que não precisaríamos mais estar pagando royalties e serviços técnicos por essas contribuições dispensáveis ao nosso universo mental, e que só não o fazemos por absoluta preguiça conceitual e vagabundagem metodológica dos nossos intelectuais. Ao trabalho, rapazes e moças: libertem-se do que é importado, do que é supérfluo, para diminuir esse “passivo externo”, essa terrível dependência intelectual do estrangeiro, que só agrava a nossa “vulnerabilidade externa”, pesando indevidamente em nosso balanço de pagamentos do setor universitário.

7. Regulação e concorrência do mercado de intelectuais
            Todos os intelectuais dizem amar a liberdade, as pugnas intelectuais, o combate de ideias, a liberdade de expressão e a livre circulação das opiniões. Na verdade, como várias outras categorias sociais, sempre temerosas da livre concorrência, eles adoram uma boa reserva de mercado, um nicho garantido por um título de exclusividade, uma licença régia qualquer que lhe garanta a exploração monopólica de um serviço qualquer.
            Existiria outra razão para o jornalismo ser exercido por “intelectuais” portadores de certificado? Ou eles não são intelectuais os jornalistas? Pela nossa definição, eles se encaixam: lidam com conceitos, opiniões, argumentos, produzem ideias, informações, dicas úteis à sociedade, ao corpo e ao espírito, quem vai dizer que eles não são o que pretendem ser? Eles vivem, em última instância, da palavra escrita e, portanto, se encaixam na definição.
            Ainda que não fossem: os que se pretendem verdadeiros intelectuais são uma espécie de jornalistas universitários: vivem processando informações, elaborando dados em novas apresentações externas, remodelando o conteúdo daquelas ideias que possam ter fabricado no passado, aplicando um Lavoisier em outras que são recicladas de colegas porventura falecidos, enfim, fazem aquilo que se faz nas redações, apenas que eles têm um público cativo, e o mais das vezes passivo, ao passo que os outros, os intelectuais da imprensa precisam, pelo menos, fazer com que a clientela compre a sua produção como condição de sobrevivência física.
            O intelectual universitário não: ele dispõe de uma reserva de mercado, que pode explorar à vontade – stricto et lato sensi – e não precisa nem mesmo se preocupar com a satisfação do consumidor: as condições estão dadas pela estabilidade, uma tenure que em outros países – que exibem intelectuais mais competitivos – só se alcança ao cabo de longos e longos anos de produtividade desenfreada, segundo o velho princípio do publish or perish, e que é aferida regularmente para fins de patrocínio ou financiamento quanto a seus resultados efetivos, não os proclamados pela própria casta. Na verdade, nosso intelectual não quer concorrência, ele não gosta de concorrência, ele aprecia mesmo um bom monopólio, de preferência público, que explora privadamente.
Querem um exemplo?: O projeto de lei que cria o escritor de carteirinha. Trata-se do projeto de lei nº 4641, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Antônio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) e que “dispõe sobre o exercício da profissão de escritor”. Será que esse escritor profissional terá de trabalhar 8 horas por dia, vai descontar imposto sindical, terá férias remuneradas, direito a FGTS, essas coisas?

8. As finanças dos intelectuais: transparência e recursos não-contabilizados
Assunto nebuloso este, aliás como tudo o que diz respeito a renda e pagamento de impostos em nosso país. O intelectual detesta ser um mero assalariado, o que ele acaba frequentemente sendo, geralmente do Estado. O intelectual assalariado não consegue ter liberdade para dispor de seus recursos. Se for para ser um assalariado, melhor ser como aqueles antigos artistas e intelectuais sustentados por mecenas endinheirados – o que é uma tautologia, obviamente – ou príncipes ainda não decadentes de cortes europeias, com castelos funcionais (com quadras de tênis, banheiros modernos e ar condicionado). Ser um Da Vinci, um Voltaire, e levar uma vida de palácio, de doces tertúlias na verdura suave de uma tarde de verão, isso é que é vida. Stop o sonho e voltemos à realidade.
O intelectual precisa, como qualquer mortal, se preocupar com o supermercado, o salário da empregada – sim, eles ainda não aboliram totalmente a escravidão – e o avanço do fisco sobre seus rendimentos não declarados. Claro que eles têm esse tipo de renda extra: quantas palestras, quantos artigos ou resenhas, quantas crônicas para essas revistas corporativas não surgem assim do nada e não é que “pinga”, em contrapartida, algum dinheiro ocasional para o choppinho da sexta-feira? Mais importante: quantos projetos e seminários, e visitas e convites, e livros coletivos e tantas outras oportunidades mais não surgem na vida do intelectual, sobretudo quando o seu preço de mercado já subiu por força de alguma ideia poderosa que encontrou muitos tomadores no mercado?
Como todo e qualquer brasileiro, intelectual também é gente, assim que, ao lado dos rendimentos declarados, e mesmo dos investimentos de portfólio, sempre existe uma parte de recursos não contabilizados e de “seguro de risco”. De preferência bem discreto, pois como todo mundo sabe, transparência demais é burrice. Mas aqui não vai nenhuma distinção especial, nenhuma exclusividade do intelectual. Ele é simplesmente como qualquer um de nós...
9. Uma lei de responsabilidade social para os intelectuais?
Seria bem vinda, sobretudo para aplicar naqueles que pretendem revender ideias alheias, métodos não testados, sugestões que não funcionam, problemas que estão longe de problematizar adequadamente, anomalias conceituais, paralaxes cognitivas, enfim, num conceito popularizado por Alain Sokal et Jean Bricmont, “imposturas intelectuais”.
Existem muitas imposturas intelectuais em nossas universidades, algumas até não percebidas como tais e que passam pelo mais puro produto do espírito que anda. (Ou alguém já conseguiu matar a praga do Foucault, que continua a torturar nossos aluninhos mesmo muitos anos depois de morto?) Difícil terminar com todas elas, sobretudo porque as ideias e seus criadores não se submetem a um simples teste da verdade, já não digo a falsificabilidade popperiana, mas um simples teste de sua adequação à realidade, de verificação empírica, de comprovação de laboratório, de validação socrática pela lógica das aproximações sucessivas. Elas são pragas renitentes.
Uma lei de responsabilidade social para os intelectuais os obrigaria a trazer a prova de suas afirmações, a fazer um simples cálculo de custo-benefício para verificar o retorno social de suas propostas de reforma da natureza e de transformação da sociedade. Os intelectuais parecem ser como a Emília, naquela história homônima de Monteiro Lobato: eles saem por aí com uma varinha mágica sociológica, um pó de pirlimpimpim filosófico, e se dispõem a oferecer a políticos incautos – sobretudo em épocas eleitorais – grandes projetos nacionais, a custo quase zero (no papel, mas as comissões são à parte), e uma indefinição absoluta quanto aos resultados. São tão traficantes quanto políticos que oferecem empregos na máquina pública, com a diferença que depois eles não precisam mourejar para produzir algum resultado tangível a partir de suas ideias malucas.
Uma lei dessas viria a calhar, mas não é provável que ela venha a existir any time soon: intelectuais são como cartomantes, eles oferecem um futuro qualquer, mas não garantem exatamente quando ele vai se realizar, e não admitem cobranças a respeito. Se calhar, eles até vendem suas ideias em dez vezes “sem juros”. Querem apostar?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2006