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sábado, 13 de abril de 2024

O peso do passado na política industrial - Lu Aiko Otta (Valor Econômico)

O peso do passado na política industrial 

A recente experiência brasileira envolvendo o uso do poder do Estado para fortalecer a economia recomenda cautela

Lu Aiko Otta

Valor Econômico, 10/04/2024


Como parte da nova política industrial, o governo federal aceitará pagar até 10% mais caro em suas compras de produtos e serviços, se forem nacionais. O adicional poderá chegar a 20% se, além disso, houver desenvolvimento tecnológico local.

Parece bom, se o objetivo é fortalecer empresas nacionais e, melhor ainda, a pesquisa e a inovação. No entanto, a recente experiência brasileira envolvendo o uso do poder do Estado para fortalecer a economia recomenda cautela.

Na administração federal direta (que não envolve estatais), a definição de quais produtos e serviços poderão ser comprados com a margem de preferência de 10% a 20% ficará a cargo de uma comissão interministerial instalada há duas semanas.

“Com a instituição da comissão, busca-se melhorar a governança e dar maior transparência às políticas públicas desenhadas para potencializar o uso do poder de compra do Estado para a promoção do desenvolvimento sustentável”, disse à coluna o presidente do colegiado, Emílio Chernavsky. “Deve-se pontuar que tais políticas têm sido largamente utilizadas ao redor do mundo, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento.”

Os estudos que darão base às decisões da comissão serão tornados públicos. É uma opção mais transparente do que deixar a cargo de cada ministério a aplicação das margens, explicou um técnico.

Nos bastidores, é citada a frase atribuída a Louis Brandeis, que integrou a Suprema Corte dos EUA de 1916 a 1939. Disse ele que a publicidade é o melhor remédio para doenças sociais e industriais, a luz do sol é tida como o melhor dos desinfetantes e a luz elétrica é o melhor dos policiais.

Prevista em leis de 2010 e 2021, a margem de preferência é criticada por especialistas por admitir que o setor público pague mais caro em suas compras.

Os técnicos do governo relativizam essa avaliação. Sustentam que os produtos e serviços nacionais recolhem impostos aqui, o que também tem impacto fiscal.

Além disso, a margem de 10% seria uma forma de dar isonomia competitiva às empresas brasileiras, por juros e tributos mais altos aqui do que os cobrados no exterior.

Um estudo elaborado pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda em 2015 comprovou que a aplicação de margens de preferência ajudou a elevar a concorrência nas licitações, o que reduz preços. É algo que se observa em outros países que adotaram a ferramenta, disse um técnico. Outro efeito detectado em estudos é trazer mais micro e pequenas empresas para a disputa.

Uma dificuldade que se viu no passado, conta um integrante do governo, era determinar se o produto era mesmo fabricado no Brasil. A ideia agora é recorrer às bases de dados já existentes no governo para fazer a checagem. Por exemplo: o Credenciamento de Fornecedores Informatizado (CIF), do BNDES, ou cadastros da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Samuel Pessôa, chefe de pesquisa da Julius Baer Brasil e associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), comentou que, se as compras com margem de preferência envolvem um custo adicional, devem trazer retorno para a sociedade. No entanto, observou, o interesse público foi pouco defendido no passado.

As falhas ocorridas aqui são, possivelmente, referências mais relevantes do que o Inflation Reduction Act (IRA) dos Estados Unidos, lembrado pelo governo como uma prova de que não estão sendo criadas novas jabuticabas por aqui.

Mas é preciso ver no que vai dar o IRA, disse Pessôa. É algo novo, que se assemelha à política de formação de grandes empresas, na qual foram injetados 10% do Produto Interno Bruto (PIB) no BNDES. Aqui, os resultados não foram bons, avaliou.

Um ponto que diferencia atual política industrial de suas antecessoras é seu pequeno impacto fiscal, destacou o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso. Enquanto o IRA despeja US$ 1 trilhão anualmente, aqui os empréstimos com subsídios somam R$ 25 bilhões ao ano.

No global, a atual versão contém outras características que Velloso considera necessárias a uma boa política: mira o topo da tecnologia, privilegia a inovação, foca no bem-estar da sociedade.

“Mas estamos aplainando o terreno, apenas”, comparou. “E a casa vai demorar a ficar pronta.”

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse há duas semanas em entrevista à CNN que o poder público passa por um processo de reeducação.

“Nós perdemos, lá atrás, a mão. Tínhamos uma construção que foi feita a partir do segundo mandato do presidente Fernando Henrique - não do primeiro, mas a partir do segundo mandato - que perdurou até 2013. A partir desse momento, eu acredito que foi-se... testando hipóteses que não promoviam o desenvolvimento e que depois eram difíceis de abandonar.”

Com um pouco de boa vontade, é possível ver sinais de que ajustes estão sendo feitos para não repetir desta vez o desastre econômico que se viu no segundo mandato de Dilma Rousseff. É cedo, porém, para saber se os cuidados serão suficientes.

 

 



quarta-feira, 6 de março de 2024

O perigoso excesso de poupança da China - Martin Wolf (Valor Econômico)

Desde os anos 2000, jornalistas e economistas previram muitas crises, bolhas e fracassos da economia chinesa, que nunca ocorreram. Será mais um anúncio exagerado? (PRA)

O perigoso excesso de poupança da China 

Pequim deve ousar escolher remédios radicais

Martin Wolf*


Valor Econômico, quarta-feira, 6 de março de 2024


China é a superpotência global da poupança. No passado, em uma economia em rápido crescimento com oportunidades de investimento excelentes, suas altas poupanças foram um grande ativo. Mas também podem causar grandes dores de cabeça.

Hoje, com o fim do boom imobiliário, gerenciá-las se tornou um desafio. O governo chinês deve ousar escolher remédios relativamente radicais.

De acordo com o FMI, a China gerou 28% da poupança global total em 2023. Apenas um pouco menos do que a participação de 33% dos EUA e da UE combinados. Isso é bastante extraordinário.

Também tem várias implicações. Uma delas é que se a China fosse uma economia de mercado aberto, seus mercados de capitais seriam os maiores do mundo. Outra é que a forma como essa poupança é gerenciada provavelmente será o determinante mais importante das taxas de juros globais e do balanço de pagamentos globais.

Analisei esses desafios subjacentes em uma coluna em setembro. Uma visita recente à China confirmou tanto a importância desse problema quanto a aparente falta de vontade do governo em fazer mudanças decisivas na estrutura de renda e gastos. Portanto, é muito provável que a China continue a ter uma propensão extremamente alta para poupar.

Mas isso não se deve principalmente à frugalidade das famílias chinesas, como muitos pressupõem. Ainda mais importante é a baixa participação das famílias na renda nacional.

Em outras palavras, como Michael Pettis da Guanghua School of Management da Universidade de Pequim frequentemente argumentou, as poupanças da China são em grande parte uma questão de distribuição. Isso pode ser o motivo pelo qual é difícil que reduzam e, portanto, a taxa de poupança permaneça acima de 40% do PIB.

Se a demanda deve corresponder à oferta potencial em tal economia, a soma do investimento doméstico com o superávit em conta corrente deve corresponder às poupanças desejadas.

Se não corresponderem, o ajuste funcionará por meio de atividade econômica fraca —ou seja, uma recessão ou até mesmo uma depressão. Isso é "estagnação secular".

Com poupanças tão altas quanto as da China, é difícil evitar isso. Fazer isso exigiu um enorme superávit em conta corrente antes da crise financeira global de 2008 e, posteriormente, o boom imobiliário alimentado pela dívida do país.

Este último aparentemente acabou. Então, o que vem a seguir? Um curso natural seria a taxa de investimento cair significativamente.

É altamente improvável que a taxa de investimento economicamente lucrativa possa permanecer acima de 40% do PIB em uma economia cuja taxa de crescimento potencial diminuiu pela metade nos últimos 15 anos, no mínimo. Isso não faz sentido. O boom imobiliário mascarou essa realidade. Agora ela está aqui.

Se a taxa de poupança permanecer onde está e a taxa de investimento cair, a "solução" será então um aumento no superávit em conta corrente à medida que as poupanças fluem para o exterior. Os dados oficiais ainda não mostram isso. Mas há dúvidas sobre isso.

Brad Setser do Council on Foreign Relations argumenta que o superávit pode ser o dobro do que os dados oficiais mostram, em 4% do PIB.

Uma razão para seu ajuste para cima são as lacunas não explicadas entre o superávit comercial nos dados aduaneiros e no balanço de pagamentos. Outra é que o aumento das taxas de juros mundiais não está aparecendo no rendimento líquido de ativos estrangeiros.

Um superávit em conta corrente de 4% do PIB não parece grande pelos padrões passados da China. Mas, desde 2007, quando o superávit em conta corrente da China atingiu o pico de 10% do PIB, sua participação na economia mundial (a preços de mercado, que é o que importa aqui) saltou de 6 para 17%.

Portanto, do ponto de vista do resto do mundo, um superávit chinês de 4% do PIB é muito maior do que um de 10% em 2007.

Quem vai administrar os déficits compensatórios? Quem, em particular, os administrará quando o aumento concomitante das exportações for impulsionado pelo investimento em manufaturas competitivas, como veículos elétricos?

A resposta não são países ricos e boa classificação de crédito: eles verão isso como políticas de "cada um por si". O mesmo certamente será verdade para grandes economias emergentes, como a Índia.

Se a China quiser a solução mercantilista para o excesso de poupança, terá que financiar países emergentes e em desenvolvimento menores. Pode fingir que são empréstimos.

Mas grande parte do dinheiro será doações, após o fato. Se acabar financiando energia renovável fora, isso pode ser bom para o mundo. Mas, do ponto de vista da China, seria um presente caro.

Do ponto de vista econômico, uma solução mercantilista simplesmente não funcionará. A China é grande demais para tentar algo assim. Portanto, novamente, se a taxa de poupança permanecer tão alta, a China precisa compensar a queda inevitável na taxa de investimento em propriedades com algo mais.

O que poderia ser isso e como poderia acontecer? Uma solução óbvia e desejável, que de fato já está acontecendo, é uma enorme expansão nos investimentos em energia renovável. Os benefícios para a transição energética global seriam enormes.

A questão é quão grande esse investimento poderia ser e por quanto tempo duraria. Outra possibilidade é um investimento ainda maior na indústria. Mas isso esbarrará nos limites já discutidos nos mercados no exterior.

Como Sherlock Holmes disse: "Uma vez eliminado o impossível, o que resta, por mais improvável que pareça, deve ser a verdade."

Dada a dimensão da China, seu estágio de desenvolvimento e poupança excessiva, uma parte essencial de qualquer estratégia para estabilidade macroeconômica deve ser um salto no consumo privado e público como parte do PIB.

Além disso, dadas as dificuldades financeiras dos governos locais, isso também significará um papel maior para os gastos do governo central.

A China precisa de uma nova estratégia macroeconômica. Não se trata de outro "estímulo". Trata-se de mudar a distribuição de renda e gastos. A liderança não quer fazer isso. Mas os eventos forçarão sua mão no fim das contas.

*Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

"Quase-moeda" que deu vida ao real, URV completa 30 anos, Edmar Bacha, entrevista - Lu Aiko Otta (Valor Econômico)

"Quase-moeda" que deu vida ao real, URV completa 30 anos

Depois de seis planos fracassados, país encontrou alternativa em ideia de dez anos antes, que favoreceu estabilidade e elegeu um presidente

 

Lu Aiko Otta/ Valor Econômico/ 27 de fevereiro de 2024


Não muito tempo atrás, funcionários de uma fazenda no interior de São Paulo pediram ao patrão para receber os salários em datas variadas. Era uma tentativa de driblar os supermercados, que sempre subiam os preços na véspera dos pagamentos. Assim era a vida no período da hiperinflação: uma corrida maluca entre salários e preços, na qual os trabalhadores sempre saíam perdendo.

Mal comparando, é a triste realidade vivida na Argentina nos dias de hoje. Enquanto aqui no Brasil a batalha é para colocar a inflação dentro da meta de 3% ao ano, lá a taxa chegou a 254% nos 12 meses encerrados em janeiro.

Porém, não é o caso de fazer como algumas torcidas de times brasileiros, que tripudiam dos hermanos queimando as desvalorizadas cédulas de peso. O Brasil passou por processo pior, com a taxa anual batendo nos 3.000%. Só se livrou da hiperinflação com a edição do Plano Real, em 1994, após uma sequência de seis tentativas fracassadas de estabilizar os preços (Cruzado, Cruzado II, Bresser, Verão, Collor I e Collor II) ao longo de cinco anos.

Na sexta-feira, 1-de março, completam-se 30 anos da entrada em vigor da Unidade Real de Valor (URV), uma "quase-moeda" que preparou o terreno para a chegada do real. Foi uma inovação que permitiu ao país migrar de uma economia com inflação muito alta, acima de 40% ao mês, para um cenário de taxas bem menores, sem choques nem congelamento de preços. Em julho de 1994, quando a URV deu lugar ao real, a taxa havia recuado para 6,84%. No mês seguinte, estava em 1,86%.

O Plano Real não só estabilizou preços como também foi ponto de partida para uma série de reformas que estão até hoje na base da economia brasileira. Além disso, elegeu um presidente: Fernando Henrique Cardoso, senador eleito pelo PSDB de São Paulo e ministro da Fazenda na elaboração do plano.

Nas palavras de um dos "pais" do Real, o economista Edmar Bacha, Fernando Henrique foi o "milagre" que viabilizou o plano. "Sem ele, nada disso teria acontecido", afirmou, em entrevista ao Valor. Outro "pai", Pérsio Arida, diz que a existência de uma liderança política capaz e de uma boa equipe técnica tomou possível o que parecia não ser.

O plano foi gestado no governo de Itamar Franco, que assumiu a Presidência da República em definitivo em dezembro de 1992, quando Fernando Collor de Mello renunciou ao cargo, às vésperas de o Congresso decidir seu impeachment. Itamar estava no cargo desde outubro daquele ano, quando Collor foi afastado em função do julgamento.

De início, Fernando Henrique chefiou o Ministério das Relações Exteriores. Mas, em maio de 1993, ficou sabendo por seu secretário-geral, Luiz Felipe Lampreia, que Itamar o havia anunciado como ministro da Fazenda. Perplexo,

telefonou para o presidente e ouviu como resposta: "Sua nomeação foi bem recebida". A história está no livro de memórias do ex-presidente: "A Arte da Política - A História que Vivi" (Civilização Brasileira, 2015).

FHC seria o quarto ministro da Fazenda de Itamar em oito meses de governo. Sua equipe trabalhava apenas aguardando a próxima crise para ir para casa.

De início, conta Bacha, integrante da equipe, a ideia era fazer um ajuste fiscal, algo que faltara nos planos de estabilização anteriores, e esperar o fim do mandato de Itamar. O ajuste veio com o Plano de Ação Imediata (PAI), cujo foco foi atacar o excessivo "engessamento" do Orçamento brasileiro. Na época, o Congresso concordou que 20% das verbas com destino obrigatório fossem livremente alocadas pelo governo.

"O pessoal fala que o PAI foi a preparação do Real, não foi nada", afirma Bacha. "O PAI era o que achávamos que dava para fazer, até que tivéssemos na Presidência alguém que entendesse do riscado, com quatro anos pela frente."

Essa ideia de deixar a estabilização para depois foi abandonada porque Fernando Henrique percebeu que estava diante de uma oportunidade política única, revela Bacha. "Ele era muito respeitado no Congresso, na sociedade e tinha uma relação especial com o Itamar."

A equipe precisava ser reforçada. Isso, porém, pareceu desnecessário no início de setembro de 1993, quando Itamar demitiu o então presidente do Banco Central, Paulo César Ximenes, por divergência envolvendo uso de cheques pré-datados.

"Quando o Itamar demitiu o Ximenes, eu falei: "Bom, ok, vamos embora para casa. Acabou a brincadeira"", conta Bacha. "E aí que aconteceu essa coisa maluca, inexplicável, um milagre."

FHC foi conversar com o Itamar. "Deve ter dito que ia se demitir", arrisca. Naquele momento, o risco que Itamar corria, caso perdesse seu ministro da Fazenda, era entrar em um processo de enfraquecimento político que poderia terminar em impeachment. Independentemente do diálogo que possa ter havido, o fato é que Fernando Henrique saiu da audiência com carta branca para tocar o plano.

Nessa condição, foi possível a ele trazer para seu time o economista Pedro Malan, então negociador da dívida externa brasileira, para comandar o Banco Central. E Pérsio Arida para a presidência do BNDES.

A URV foi inspirada em um paper que havia sido escrito dez anos antes, em 1984, pelos economistas Pérsio Arida e André Lara Resende. Eles propuseram um plano de estabilização que ficou conhecido como "Larida". A ideia era romper a dinâmica de alta de preços criando um sistema com duas moedas: a antiga, inflacionada,  e uma nova, que teria seu valor corrigido diariamente. No Plano Real, a moeda corrigida foi a URV, inicialmente, e depois o real.

Em 1º de março, uma URV valia 647,50 cruzeiros reais, equivalente à cotação de um dólar. Salários, benefícios previdenciários e contratos do setor público foram convertidos em URVs. Assim, ficaram com seu valor protegido contra a inflação, enquanto os preços seguiram na moeda antiga. Os assalariados perceberam vantagem com o plano. Frango e iogurte entraram no carrinho das famílias de baixa renda.

Bacha aponta para uma espécie de simbiose: o Plano Real pavimentou o caminho para que Fernando Henrique vencesse as eleições. Por outro lado, o plano não teria sobrevivido sem a vitória do tucano.

O Real escapou da sina dos planos anteriores, de funcionar por um tempo e depois naufragar, porque as circunstâncias políticas permitiram que fosse consolidado. Foi um trabalho que durou os oito anos dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Envolveu uma série de medidas para modernizar a economia, como as privatizações, a criação das agências reguladoras e adoção do tripé macroeconômico que persiste até hoje: câmbio flutuante, o uso da taxa de juros para combater a inflação e superávit fiscal.

Nesse sentido, o Real foi uma política de Estado, avalia Joelson Sampaio, professor da Fundação Getulio Vargas. "É um legado que nenhum governo teve a ousadia de mudar", afirma. O sistema de metas de inflação baseado na taxa de juros é alvo de críticas, diz, mas é algo que traz o benefício de controlar a inflação.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo - Assis Moreira Valor Econômico

Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo

Fluxo global de IED caiu 30% em relação ao primeiro semestre do ano passado

Valor,  31/10/2023 por Assis Moreira


O Brasil foi o segundo país que mais atraiu Investimento Estrangeiro Direto (IED) no primeiro semestre deste ano, só atrás dos Estados Unidos. O resultado é ainda mais significativo considerando o cenário de enormes incertezas globalmente.

Em 2022, o Brasil tinha sido o quinto país a mais acolher IED, com US$ 86 bilhões, só superado pelos EUA, China, Singapura e Hong Kong.

Agora, entre janeiro e junho deste ano, o fluxo de IED para a economia brasileira alcançou US$ 34 bilhões, comparado a US$ 35 bilhões no semestre anterior, mas -32,6% comparado a janeiro-junho de 2022.

O país sobe na classificação em meio à degringolada do fluxo global de IED, que alcançou US$ 727 bilhões entre janeiro e junho, ou 30% abaixo do volume registrado no mesmo período do ano passado. Os dados são da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE).

Entre o primeiro e o segundo trimestre, o volume de IED para a economia brasileira declinou, na esteira do que vem acontecendo globalmente.

De toda maneira, o Brasil está entre os países que mais receberam anúncios de projetos novos, ao lado dos Estados Unidos, India, Mauritânia e Reino Unido. Uma parte desses projetos é para energia renovável, como aconteceu no caso da Mauritânia.

Ao mesmo tempo, o Brasil aparece entre os emergentes como um dos países que mais ampliou IED no exterior, com US$ 21 bilhões no primeiro semestre comparado a US$ 3 bilhões no segundo semestre do ano passado.

Os Estados Unidos continuaram a ser o país a mais atrair investimento estrangeiro direto, com US$ 190 bilhões no primeiro semestre. O Brasil vem em segundo, e em terceiro ficam o Canadá e o México, e só então vem a China.

É que o fluxo de IED para a China desacelerou em 2023, com queda de 32% comparado ao segundo semestre de 2022, ilustrando o gradual desengajamento de muitas firmas na segunda maior economia do mundo.

Por outro lado, os EUA, a China e o Japão continuam a ser as maiores fontes de investimentos estrangeiros diretos no mundo.

Globalmente, as atividades de fusão e aquisição continuaram a tendência de queda, em meio ao ambiente económico mais frágil, impactado por preços altos, taxas de juros mais elevadas e as incertezas geopolíticas.

Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), destacou que o aumento de IED em alguns países, especialmente no Brasil, no ano passado, ocorreu pelo crescimento de todos os componentes do IED, especialmente o reinvestimento de lucros; e pelo aumento do fluxo no setor de serviços. Essa dinâmica está em consonância com a recuperação pós-pandemia e não é claro se se manterá em níveis semelhantes em 2023.

Em 2022, o montante de anúncios de projetos de IED na América Latina e o Caribe cresceu 93%, totalizando cerca de US$ 100 bilhões. Pela primeira vez desde 2010, o setor de hidrocarbonetos (carvão, petróleo e gás) liderou os anúncios, com 24% do total, seguido pelo setor automotivo (13%) e energias renováveis (11%).

Para a Cepal, a transição energética é um dos setores impulsionadores do crescimento econômico, que pode se tornar um motor para a transformação produtiva da região. A porcentagem da capacidade instalada de energia renovável na América Latina e no Caribe é superior à média mundial, e a matriz de geração elétrica é uma das mais limpas do mundo, diz a entidade.

Para a Cepal, o desafio de atrair e reter investimento estrangeiro direto que contribua efetivamente para o desenvolvimento produtivo sustentável e inclusivo da região é mais atual do que nunca.

Avalia que existem novas oportunidades em uma era de reconfiguração das cadeias globais de valor e de realocação geográfica da produção diante de uma globalização em mudança. https://valor.globo.com/opiniao/assis-moreira/coluna/brasil-foi-o-segundo-pais-que-mais-atraiu-investimento-externo.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O difícil retorno da democracia na Venezuela: governo do PT parece confiar em Maduro - Fabio Murakawa e Renan Truffi, Valor

 Amorim viaja a Barbados para assinatura de acordo entre Maduro e oposição venezuelana 


Acordo, mediado pela Noruega, terá o Brasil, entre outros países, como testemunha 

Por Fabio Murakawa e Renan Truffi, Valor

O assessor especial da Presidência, Celso Amorim, está em Barbados para a assinatura de um acordo entre o governo Nicolás Maduro e a oposição venezuelana para a realização de eleições presidenciais no país vizinho em 2024. 

O acordo, mediado pela Noruega, deve ser assinado nesta terça-feira e terá o Brasil, entre outros países, como testemunha. Nos últimos meses, Amorim vem atuando no processo de mediação de um acordo entre Maduro e a oposição para a realização de eleições limpas no ano que vem. Em março, ele foi a Caracas, onde se reuniu com integrantes do governo e opositores. 

Também esteve em Bogotá no mês seguinte, para conferências patrocinadas pelo presidente Gustavo Petro para tratar do tema. E, ainda manteve conversas bilaterais com representantes dos governos americano e norueguês. Maduro está no poder desde março de 2013, quando o ex-presidente Hugo Chávez morreu de câncer em Cuba. 

Ele venceu uma eleição presidencial naquele ano e outra em 2018. Entretanto, esse último pleito foi marcado por acusações internas e internacionais de fraudes e irregularidades. Ontem, Lula conversou por telefone com Maduro a respeito do acordo sobre as eleições do ano que vem. 

Os líderes trataram também do pagamento de uma dívida bilionária dos venezuelanos com empresários brasileiros que exportaram seus produtos para lá. Abordaram também o levantamento de sanções dos Estados Unidos ao petróleo produzido no país sul-americano. O Brasil voltou a normalizar as relações com o regime chavista, acusado de sabotar a democracia venezuelana, após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro. 

Seu antecessor, Jair Bolsonaro, reconhecia o então presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como governante venezuelano, seguindo uma iniciativa do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Embora houvesse ressalvas, inclusive no Itamaraty, sobre a postura de Bolsonaro, Lula também foi criticado por seu alinhamento a Maduro. Em maio, o presidente chegou a dizer que há uma "narrativa" contra a Venezuela chavista para taxar o regime como uma ditadura.

 A fala de Lula foi criticada por líderes como o presidente do Uruguai, Lacalle Pou (centro direita), e também pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, de esquerda. Em um encontro no Itamaraty, Pou afirmou que Lula "tapa o sol com a peneira" quando faz esse tipo de afirmação. Já Boric disse que as declarações de Lula são "descoladas da realidade". 

sábado, 23 de setembro de 2023

A tentativa de golpe de Bolsonaro: quase televisionada (Valor Econômico)

 Bolsonaro quis dar o golpe, está provado. Só conseguiu o apoio do camandante da Marinha. Matéria do Valor Econômico:

“NA REUNIÃO EM QUE GARNIER ADERIU AO GOLPE, COMANDANTE DO EXÉRCITO AMEAÇOU PRENDER BOLSONARO

A delação do tenente-coronel Mauro Cid jogou luz sobre o personagem que melhor ilustra a cooptação promovida pelo EX-PRESIDENTE JAIR BOLSONARO nas Forças Armadas. Quando foi alçado ao comando da Marinha, o almirante ALMIR GARNIER nunca havia comandado nenhuma das duas esquadras da Marinha, a do Rio e a da Bahia. Já havia passado pelo comando do Segundo Distrito Naval, que fica em Salvador, mas pelas esquadras, cujo comando sempre foi uma pré-condição informal, não.

Foi assim, já devedor do presidente da República, que ele assumiu o posto. Jair Bolsonaro bancara sua indicação a despeito de ele não integrar o topo da lista. Para demonstrar lealdade, em 2021 protagonizou um exercício extemporâneo dos fuzileiros navais em Formosa, Goiás. E, finalmente, em 2022, virou conselheiro de Bolsonaro. O ex-presidente ligava pra ele em toda encruzilhada em que se via no governo. Garnier havia chegado onde jamais imaginara.

Por isso, quando o ex-presidente, naquela noite de 24 de novembro, em reunião com o comando das três Forças no Palácio do Alvorada, perguntou se os comandantes estariam fechados com ele na contestação ao resultado, Garnier foi o único a responder de bate pronto que sim.

O brigadeiro CARLOS BATISTA, da Aeronáutica, ficou calado, e quem enfrentou o presidente foi o comandante do Exército, general FREIRE GOMES. Ele não apenas disse a Bolsonaro que o Exército não compactuava com um golpe como afirmou à queima-roupa: “Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”.

Não é exatamente porque setores das Forças Armadas não tenham querido dar o golpe, é porque não havia condições fazê-lo. Freire Gomes sabia que os comandantes do Sul (Fernando Soares), do Sudeste (Thomaz Paiva), do Leste (André Novaes) e do Nordeste (Richard Nunes) não apoiariam. Além disso, os americanos — civis e militares — já haviam dado fartas demonstrações de que não apoiariam. Seis comitivas desembarcaram no Brasil ao longo de 2022 com esta missão.

Um amigo que esteve com Garnier um mês depois desta reunião, numa sala da Marinha, já o encontrou à paisana, com a barba por fazer, indisposto a participar da cerimônia de transmissão do cargo.

“Será melhor para a Marinha, para o novo comandante e para você”, disse, sem sucesso, ao almirante. Este amigo fez chegar a informação ao ministro JOSÉ MÚCIO, já escolhido pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, para a Defesa.

Múcio tentou convencer Garnier a transmitir o cargo e tampouco teve sucesso. Os dois se encontrariam durante um almoço na casa do novo comandante da Marinha, MARCOS OLSEN, já sob o novo governo.

 * Delação gerou apreensão nas Forças Armadas, mas declaração de Múcio serenou ânimos

 * Marinha diz não ter tido acesso à delação

A partir daí Garnier começou a ter uns problemas de saúde e a pedir a amigos que lhe sugerissem um advogado. O almirante, de fato, vai precisar de um. Porque se esta delação do coronel Cid for confirmada, estaria sujeito a pelo menos dois crimes, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado. E a Justiça Militar? No limite, pode lhe tirar a patente. Ainda que venha a perder a titularidade do soldo de almirante da reserva, o recurso passaria a ser depositado na conta de sua esposa.

O coronel Cid, em sua delação, aparentemente escolheu virar seus holofotes para Garnier, mas há um outro almirante quatro estrelas,que tinha sala no Palácio do Planalto, como assessor direto dopresidente, o almirante Flavio Rocha, que era titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Com o fim do governo Bolsonaro, foi reincorporado ao Alto Comando da Marinha. Procurado, não atendeu à chamada do VALOR.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Itamaraty diz que 22 países oficializaram pedido para entrar no Brics (Valor Econômico)

 Itamaraty diz que 22 países oficializaram pedido para entrar no Brics


Número foi apresentado nesta quarta-feira (16) pelo secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty, Eduardo Paes Saboia

Por Agência Brasília, Valor — Brasília
17/08/2023 01h15  Atualizado há 14 horas

O Ministério das Relações Exteriores informou que 22 países já manifestaram formalmente interesse em integrar o Brics, grupo formado “até o momento” por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

O número foi apresentado nesta quarta-feira (16) pelo secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty, Eduardo Paes Saboia, durante um briefing sobre a viagem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará para África do Sul, Angola e São Tome e Príncipe.

Em Joanesburgo, África do Sul, Lula participará, entre os dias 22 e 24 de agosto, da 15ª Cúpula do Brics. De lá, segue para Angola nos dias 25 e 26. Na sequência, visitará no dia 27 São Tomé e Príncipe, onde participará da 14ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Brics
De acordo com o embaixador Saboia, a reunião de cúpula do Brics contará com a participação de 40 chefes de governo ou de Estado dos continentes africanos e asiático, além de América Latina e Oriente Médio. Todos com presença já confirmada para esta que será a primeira reunião presencial pós-pandemia. Saboia disse que apenas o presidente da Rússia, Vladimir Putin, participará de forma virtual do encontro.

O embaixador destacou algumas questões que deverão pautar a reunião entre os representantes do bloco. Uma delas, relativa à entrada de novos integrantes. “Serão discutidos critérios e princípios a serem adotados para embasar a entrada de novos membros no grupo”, disse.

Saboia lembra que este não é um tema novo. “Desde 2011 discute-se como seria a interação com países de fora do bloco. Foi então observada a necessidade de se organizar e estabelecer critérios”.

A guerra entre Rússia e Ucrânia, segundo o embaixador, deverá ser discutida apenas internamente, durante o chamado “retiro”, quando os chefes de Estado e de governo do Brics se encontrarão de forma fechada. “Certamente o tema será discutido de forma mais aprofundada do que [deverá constar] na declaração [ao fim do evento]”, antecipou Saboia.

Outra questão a ser discutida pelo grupo será o uso de moedas locais ou de uma eventual unidade de referência do Brics para transações comerciais.

“É provável que haja algum resultado nessa área”, antecipou Saboia, referindo-se aos planos para o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), mais conhecido como Banco do Brics. “Este é um ativo muito importante do bloco”, segundo Saboia.

Angola e São Tomé
Sobre a viagem a Angola, o embaixador disse que o encontro reforçará a parceria estratégica entre os dois países, que se desdobra em vários setores. “A Angola é um país importante no contexto africano, com o qual desde 2010 temos parceria estratégica e densidade de relações”.

Estão previstos encontros com o presidente angolano, João Lourenço; e com empresários angolanos e brasileiros. “Sessenta empresas brasileiras já confirmaram presença em um evento empresarial”, informou Saboia. Além disso estão previstas as assinaturas de atos e memorandos nas áreas de agricultura, processamento de dados, saúde e educação.

Em São Tomé, Lula participará da 14ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Saboia destacou o apoio mútuo que os países d

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guerra comercial custará caro - Martin Wolf (Valor)

Guerra com o comércio custará caro 

Mundo mais protecionista estará mais propenso a choques inflacionários

Martin Wolf

Valor Econômico, 5/04/2023


Estamos vivendo em um mundo dividido. Essas divisões possuem muitas ramificações. Mas a mais importante delas é o comércio global. A desaceleração do comércio mundial, a mudança em direção ao nacionalismo econômico e as crescentes demandas do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos por uma dissociação da China, estão remodelando a economia mundial. Ainda não está claro até onde essa dissociação irá. Também não está claro até onde irá o intervencionismo introspectivo. Mas não há dúvida de que este é um ponto de inflexão significativo, com resultados imprevisíveis e, muito provavelmente, danosos.

Como revela um importante artigo recente do Peterson Institute for International Economics (PIIE), assinado por Alan Wolff, Robert Lawrence e Gary Hufbauer, a hostilidade ao comércio que vem se apoderando cada vez mais dos EUA corre o risco de reverter nove décadas de uma política extremamente bem-sucedida. Desde o desastre protecionista do começo da década de 30, o propósito da política dos Estados Unidos tem sido criar um sistema comercial aberto e governado pelas regras.

Essas políticas criaram uma economia mundial mais próspera, que se tornou a base do sucesso econômico (e, portanto, político) ocidental na Guerra Fria. Elas facilitaram uma redução impressionante da pobreza global. Elas são a credencial mais importante para a afirmação dos EUA de serem uma hegemonia benigna.

Hoje, no entanto, Donald Trump e Joe Biden, que discordam em quase tudo, concordam que isso foi um erro - uma fraude contra os trabalhadores americanos. Além disso, não são apenas as políticas na fronteira que estão mudando. Os EUA também estão adotando uma política industrial agressiva, apoiada por subsídios generosos. Atrás dela, e a fortalecendo, está a grande disputa por poder com a China. Estamos realmente entrando em um novo mundo.

Duas explicações amplas podem ser dadas para essa mudança fundamental na política dos EUA. Uma é a rejeição do "neoliberalismo"- um rótulo pejorativo para as políticas voltadas para o mercado. Mas, ao contrário da visão disseminada, não é verdade que o comércio liberal seja uma causa dominante ou mesmo significativa dos problemas das classes trabalhadores das sociedades ocidentais. O principal condutor do declínio do emprego no setor industrial tem sido o aumento da produtividade.

Entre 2000 e 2020, 6 milhões de empregos foram perdidos no setor manufatureiro nos EUA. Mas apenas cerca de 1 milhão dessa perda (agora no passado distante) se deveu às importações da China. A falha foi não fornecer nenhuma proteção para aqueles que perderam os empregos e para os lugares onde eles viviam, assim como ignorar o aumento da desigualdade econômica.

A outra explicação é a ascensão de um concorrente que opera com tanto sucesso na economia mundial aberta. Isso está relacionado com a crescente suspeita do livre mercado para justificar a dissociação da China, o "reshoring" ou "friendshoring" das cadeias de suprimentos, e políticas comerciais e industriais intervencionistas e protecionistas. Além disso, essas novas políticas não são dirigidas apenas à China. As políticas "buy America" estão visando tanto amigos como inimigos.

Essa mudança de política na potência hegemônica mundial levanta três grandes questões. Primeiro, essas políticas funcionarão em seus próprios termos? Há um bom motivo para duvidar disso. Adam Posen, do PIIE, recentemente afirmou que o "self-dealing" [situação em que alguém usa sua posição para obter vantagens] da atual postura dos EUA se mostrará contraproducente, que a autossuficiência é uma meta tola, que o subsídio competitivo é um jogo de soma zero e que a politização do comércio certamente levará a resultados destrutivos. Além disso, ele diz que o foco na produção é equivocado; o que importa é a adoção de novas tecnologias. Não menos importante, ao decidir suas políticas, os EUA precisam entender que estão dando um exemplo que outros seguirão. Os intervencionistas no exterior se sentirão legitimizados, tornando a economia mundial menos aberta.

Em segundo lugar, qual será o impacto dessa mudança sobre a economia mundial? Eswar Prasad, da Universidade Cornell, alerta que "todos os países, ricos e pobres, um dia lamentarão sua virada para dentro". Apoiando isso, um novo livro do Banco Mundial observa que as perspectivas de longo prazo para o crescimento econômico mundial estão se deteriorando. Um dos motivos para isso é a desaceleração do crescimento do comércio global desde a crise financeira de 2007-2009, que foi agravada pelos choques pós-covid e o aumento do protecionismo. Entre outras coisas, conforme observa o livro, o comércio "é um dos principais canais de difusão de novas tecnologias". Além do mais, deve-se notar, um mundo mais protecionista será um mundo com menores elasticidades de oferta e, portanto, estará mais propenso a choques inflacionários.

Por último, mas não menos importante, como essa mudança será inserida em um mundo em que grandes potências se confrontam? A resposta óbvia e racional é definir as exceções às regras gerais do comércio liberal com precisão e clareza. Assim, nas cadeias de suprimentos e tecnologia, os EUA e outras potências deverão definir onde exatamente eles acham que o mercado falhará em fornecer a eles a segurança de que precisam, e ajustar suas políticas de acordo. Será necessário um monitoramento contínuo dos riscos econômicos e de segurança relevantes e o ajuste das políticas associadas. Ao mesmo tempo, o intervencionismo orientado para a segurança deverá ser o mais preciso e não protecionista possível, de forma a continuar ganhando com as economias de escala proporcionadas pelo comércio internacional.

Agora suponha que isso seja impossível e que China e EUA se voltem cada vez mais para dentro. O que os outros países deveriam tentar fazer? Uma resposta é criar um acordo de livre comércio baseado nos princípios da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas indo além deles. O cerne de tal acordo existe: o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP). Ele nasceu da Parceria Transpacífico, criada por Barack Obama e que foi repudiada por Trump. Então eles poderiam acrescentar os oceanos Atlântico e Índico. E também deixar as superpotências de fora. O resto do mundo ainda pode cooperar. 

Ao contrário da visão disseminada, é falso que o comércio liberal seja causa dominante dos problemas das classes trabalhadores das sociedades ocidentais. O principal condutor do declínio do emprego industrial tem sido o aumento da produtividade (Tradução de Mario Zamarian).

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

OMC: Trade Policy Review do Brasil - Assis Moreira (Valor)

 Países pedem ao Brasil na OMC combate ao desmatamento e reforma tributária


Olhando para o futuro, a União Europeia disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia

Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 10h09  Atualizado há 3 horas

Parceiros sinalizaram na Organização Mundial do Comércio (OMC) pelo menos dois temas que vão pesar na atração de mais investimentos e no reforço das relações econômicas também durante o próximo governo em Brasília: combate ao desmatamento e reforma tributária.

Durante exame da política comercial brasileira, iniciada na quarta-feira, 48 delegações se manifestaram, e outras vão fazer o mesmo nesta sexta-feira, em meio a expectativas sobre o que fará o governo de Luiz Inácio Lula da Silva a partir de janeiro.

A União Europeia (EU) lembrou que o país está em transição para um novo governo, e destacou que o governo atual em Brasília “tomou medidas tomadas para facilitar o comércio e os investimentos, melhorar o clima empresarial, colocar em prática novas regras de compras públicas e para abrir ainda mais a economia brasileira para o mundo”.

Olhando para o futuro, a UE disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia. “A UE também encorajará o Brasil a enfrentar uma série de desafios ambientais, notadamente para reverter a tendência atual de aumento do desmatamento, e para assegurar que o comércio não sirva como um motor para tal desmatamento”, afirmou o representante europeu.

A UE disse ter acolhido com satisfação o discurso feito em Sharm el-Sheikh pelo presidente eleito Lula. “O comércio e os investimentos têm um papel importante a desempenhar.

Incentivamos o Brasil a continuar a criar um clima de investimento favorável às energias renováveis e a tomar medidas para dissociar a produção agrícola e o comércio do desmatamento. Estamos prontos para cooperar com você enquanto tentarem enfrentar este desafio”, afirmou.

Os europeus disseram esperar mais informações sobre o atual plano de reforma tributária do Brasil, incluindo seu cronograma. “Em particular, estaríamos interessados em saber como o governo irá lidar com as distorções fiscais existentes entre produtos importados e nacionais que acreditamos não terem justificativa”, disse seu representante.

A Suíça, que participa da Efta, um grupo de pequenos países fora da UE e que tem praticamente fechado um acordo com o Mercosul, destacou que “a abertura comercial deve ir de mãos dadas com considerações para o desenvolvimento sustentável” e conclamou o Brasil “a considerar também a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e a redução das desigualdades sociais ao definir suas políticas econômicas e comerciais para o futuro”.

O Reino Unido, que também vai procurar acordo com o Mercosul em algum momento, observou que existem oportunidades para o Brasil e o Reino Unido construírem em terreno comum na área ambiental. Exemplificou com a Tarifa Global do Reino Unido, que removeu unilateralmente as barreiras ao comércio verde.

Os Estados Unidos, de seu lado, mencionaram o relatório da OMC sobre o Brasil, notando que nos últimos cinco anos o país “vem implementando ambiciosas reformas estruturais de longo prazo, projetadas para tornar sua economia mais competitiva e resistente” e que, “com o início da pandemia, o crescimento projetado do Brasil parou, e o governo redirecionou recursos para atender às necessidades urgentes dos brasileiros”.

Agora, na medida em que os dois países emergem da pandemia, os EUA acreditam em oportunidades de expandir os laços comerciais com o Brasil “de uma maneira que reflita valores compartilhados”.

O Japão elogiou o que chamou de esforços do Brasil para melhorar seu ambiente de
investimento e negócios, mas cobrou novas iniciativas para resolver o chamado custo-Brasil,
como o complexo sistema tributário e os gargalos de infraestrutura, como apontado no relatório
da OMC.

“Esperamos também que o governo continue a considerar e ouvir as necessidades do setor privado nestes esforços”, acrescentou o Japão. Destacou que o baixo crescimento continua a ser um desafio perene no Brasil. “Acreditamos que novos esforços para melhorar o sistema tributário e os gastos fiscais, fortalecer a governança e aumentar a produtividade do trabalho são importantes para superar o baixo crescimento da economia brasileira no futuro, uma vez que o espaço para as políticas fiscal e monetária está se estreitando no contexto de um endividamento elevado e preços crescentes”, disse.

Também para o Canadá “o Brasil ainda apresenta desafios significativos para as empresas que desejam fazer negócios no país”. Disse que a necessidade de implementação efetiva e oportuna de uma reforma tributária significativa no Brasil e de uma maior redução da carga regulatória sobre as empresas continuam sendo as principais preocupações do Canadá, assim como a redução das lacunas de infraestrutura.

Para a Coreia do Sul, que desde 2018 negocia um acordo comercial com o Mercosul, é do interesse das empresas estrangeiras receber mais informações e clareza sobre o sistema de tributação - incluindo tributação interna, ajuste de fronteiras de exportação e incentivos fiscais.

Igualmente, um ponto de preocupação para o México “é o complexo regime tributário interno do Brasil, que o próprio relatório da OMC reconhece que afeta particularmente o tratamento de bens e serviços importados”. Para o México, o fato de as transações domésticas e transfronteiriças estarem sujeitas a vários impostos federais e subfederais não só cria custos mais altos para os exportadores para o Brasil e a possibilidade de acumulação cruzada desses impostos, mas também gera ineficiências no sistema.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/pases-pedem-ao-brasil-na-omc-combate-ao-desmatamento-e-reforma-tributria.ghtml


Brasil recebe mais de 800 questões sobre política comercial na OMC

Delegação brasileira afirmou que o atual governo fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental

Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 13h28  Atualizado há 11 minutos

O Brasil recebeu mais de 800 questões para responder no exame de sua política comercial, na Organização Mundial do Comércio (OMC). E uma de suas mensagens é que o governo atual fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental.

A delegação brasileira observou que o país tem uma agenda comercial baseada em três pilares: intensificação da rede de acordos comerciais e das negociações comerciais, inclusive na OMC; modernização da estrutura tarifária do Mercosul; e facilitação do comércio.

“Embora ainda haja muito trabalho a ser feito, o Brasil foi capaz de produzir resultados significativos em cada um desses pilares”, defendeu.

Exemplificou que todos os parceiros comerciais do Brasil se beneficiariam pelo menos da tarifa média de 9,4%, a partir de julho deste ano, o que representaria um declínio de 18% (ou 2,2 pontos percentuais) relativamente a 2017.

“O Brasil conseguiu liberalizar ainda mais o comércio durante tempos desafiadores para a economia mundial, quando muitas outras partes do mundo seguiram numa direção diferente”, afirmou.

Em resposta à pandemia da covid-19, o Brasil diz que reduziu a zero as taxas de importação sobre uma lista de 548 equipamentos médicos e de proteção. E que eliminou mais de 700 mil exigências de licenças de importação automáticas e não-automáticas.

Segundo a delegação brasileira, o governo reduziu também de 13 para 5 dias o tempo médio de exportação, o que teria gerado uma economia anual estimada em US$ 14 bilhões para o setor privado, graças ao programa de janela única.

Quanto à sustentabilidade ambiental, tema do qual o país é cobrado, na agricultura o Brasil diz que tem buscado a adoção de tecnologias de economia de terra, medidas de conservação e políticas para fomentar a produtividade e a sustentabilidade do setor.

“A sustentabilidade agrícola como conceito significa a possibilidade dos sistemas agrícolas manterem a produção a longo prazo, sem o esgotamento sensível dos recursos que lhes dão origem, tais como a biodiversidade, a fertilidade do solo e os recursos hídricos”, argumentou a delegação brasileira.

Na visão do Brasil, “o mundo não terá as ferramentas para enfrentar os desafios de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a menos que promovamos mais crescimento e desenvolvimento mais sustentável”.

Para o governo, os membros da OMC “não podem enfrentar a questão ambiental de forma eficaz se perdermos de vista o quadro geral”.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/brasil-recebe-mais-de-800-questes-sobre-poltica-comercial-na-omc.ghtml

terça-feira, 26 de julho de 2022

Cúpula do Mercosul expõe de novo desavenças no bloco (Valor)

 Cúpula do Mercosul expõe de novo desavenças no bloco


Bloco segue afetado pelas fraquezas individuais de seus membros, que o impedem de tirar proveito da soma de forças

Valor, 26/07/2022

Marcada para selar a conclusão do acordo de livre comércio com Cingapura, a 60ª Cúpula dos Chefes de Estado do Mercosul, realizada na semana passada na capital do Paraguai, acabou terminando em anticlímax. Ao final do evento, o Uruguai anunciou a intenção de negociar um acordo bilateral com a China, mesmo que os demais membros fiquem de fora. Esse é um plano de quase 20 anos do governo uruguaio e sua implementação é mais um dos sinais de enfraquecimento do bloco.

A ausência do presidente Jair Bolsonaro no encontro, embora o anfitrião, o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, tenha insistido para que fosse, foi outro sinal de fragilidade do Mercosul. Pela primeira vez um presidente do Brasil não participou de uma reunião de cúpula.

Dois presidentes do bloco faltaram em outras ocasiões, ambos argentinos. Um deles, Fernando de la Rúa, tinha bons motivos: renunciou no mesmo dia em que deveria chegar na cúpula, em Montevidéu, em 2001. O outro foi Cristina Kirchner, que evitou ir à reunião de 2011 em Assunção para evitar uma cobrança do paraguaio Fernando Lugo.

Sem motivo evidente, a não participação de Bolsonaro foi associada ao desinteresse que ele e o ministro da Economia, Paulo Guedes, já manifestaram pelo bloco algumas vezes. Por isso, pareceu sem convicção sua afirmação em vídeo enviado ao evento de que o Brasil havia participado ativamente da confecção do acordo com Cingapura, cuja negociação começou em 2018 e emperrou por conta da pandemia. O acordo elimina as tarifas de importação de cerca de 90% do intercâmbio bilateral. Além disso, inclui facilitação de investimentos, abertura de serviços e regras para comércio eletrônico nos termos mais amplos já assumidos pelo Mercosul.

Apesar de Cingapura ser um mercado relativamente pequeno, com quase 6 milhões de habitantes e uma das rendas per capita mais elevadas do mundo, é importante entreposto comercial na Ásia. Faz parte de 27 tratados de livre comércio, que englobam Estados Unidos e União Europeia, além dos mega-acordos CPTPP, que inclui parceiros do Pacífico, e o RCEP, que abrange China, Coreia e a série de dinâmicas economias da Asean. Importou US$ 6 bilhões do Brasil no ano passado. O estoque de investimentos diretos de Cingapura no Brasil alcança quase US$ 10 bilhões, com participações importantes em infraestrutura e indústrias de base.

Outro ponto importante da 60ª Cúpula do Mercosul foi a formalização do corte de 10% na Tarifa Externa Comum (TEC) por todos os países-membros. Brasil e Argentina já haviam concordado, no ano passado, em diminuir em 10% as tarifas de cerca de 9 mil produtos, que cobrem 87% das nomenclaturas do Mercosul. Ficaram de fora autopeças, têxteis, laticínios e pêssegos. Com a adesão do Paraguai e Uruguai fica mais difícil uma eventual alta da TEC no futuro. Esse era o objetivo do governo brasileiro que, na verdade, já fez nova rodada de redução de 10% em suas tarifas em maio com o objetivo de reduzir a inflação.

A surpresa foi o anúncio do presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, de que vai negociar acordo bilateral com a China ainda neste ano. A intenção já havia sido manifestada no governo de Tabaré Vázquez, em 2005.

Anteriormente, os outros membros conseguiram conter o Uruguai. Agora, o próprio governo de Bolsonaro teria planos semelhantes e mais de uma vez indicou que o Mercosul seria uma camisa de força a seus projetos de comércio exterior. Outro entrave mais complicado é que o Paraguai tem relações com Taiwan e não com a China.

O bloco parece mais fragmentado do que nunca e afetado pelas fraquezas individuais de seus membros, que o impedem de tirar proveito da soma de forças. A Argentina enfrenta sérios desafios econômicos. O Brasil também tem seus problemas e parece ser o principal empecilho ao avanço de acordos do Mercosul com outros mercados importantes.

Os acordos do bloco com a União Europeia e com o EFTA (Suíça, Noruega, Islândia, Liechtenstein), concluídos em 2019, não avançam porque os europeus demandam a redução do desmatamento e questionam a política ambiental do governo de Bolsonaro que, do seu lado, reclama de manobras protecionistas dos europeus. Os recentes assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips engrossaram os argumentos dos europeus. A sinalização mais recente é que a União Europeia vai esperar o resultado da eleição presidencial de outubro para apresentar ao Mercosul a demanda de compromissos adicionais na área ambiental.

https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2022/07/26/cupula-do-mercosul-expoe-de-novo-desavencas-no-bloco.ghtml

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guerra expõe a força da ala realista do governo - Fernando Exman (Valor Econômico)

 Guerra expõe a força da ala realista do governo


Grupo ideológico dificilmente irá retomar o Itamaraty

Fernando Exman
Valor Econômico, 27/04/2022 

Em 1996, Samuel P. Huntington registrou no livro “O choque de civilizações” o indigesto comentário de um general russo: “A Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia oriental voltará em 5, 10 ou 15 anos [para a Rússia]. A Ucrânia ocidental pode ir para o inferno”.

Polêmico, o livro foi produzido a partir de um artigo publicado anos antes pelo intelectual americano com a sua visão do que seria a nova fase das relações internacionais iniciada com o término da Guerra Fria.

A obra divide opiniões. Foi criticada pelos entusiastas da globalização e por aqueles que condenam o que consideram generalizações e preconceito contra muçulmanos contidos no texto. Mas até hoje ela é citada, por outro lado, entre os que temem um deslocamento de poder da “civilização ocidental para civilizações não ocidentais”.

Não é diferente no Brasil, onde a guerra na Ucrânia novamente expôs a rivalidade entre pragmáticos e ideológicos que coabitam o governo Jair Bolsonaro.

É antigo o antagonismo entre os dois grupos. Um momento de grande tensão ocorreu em meio às discussões sobre a possibilidade de o Brasil transferir sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o que criaria severas dificuldades comerciais com parceiros árabes.

O agronegócio estava no centro das preocupações do governo, assim como hoje - a Rússia é importante fornecedora de fertilizantes. Pouco antes de Bolsonaro viajar para Israel, um proeminente representante dos militares chegou a bradar, com o dedo apontado para o rosto de um elemento da ala ideológica, que os interesses do Brasil estavam sendo colocados em risco por causa de uma “molecagem”.

O presidente, como se sabe, recuou: anunciou apenas a abertura de um escritório comercial em Jerusalém, dando fim a uma crise que o próprio governo criou. Com o passar do tempo, a ala ideológica foi acumulando desgastes. Até que perdeu o controle do Itamaraty e parte considerável da influência que tinha no Palácio do Planalto.

Sinais desse processo também foram vistos no início da sangrenta operação militar conduzida pela Rússia.

Bolsonaro chegou a ser criticado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. Sob a ótica do embaixador, a posição correta do país, compatível com valores morais e interesses materiais brasileiros, seria um apoio à Ucrânia e um alinhamento às grandes democracias ocidentais. A neutralidade representaria, na prática, uma preferência pela Rússia. Mais do mesmo: a política externa inaugural do governo Bolsonaro defendia a importância de o Brasil alinhar-se ao “Ocidente”.

No atual momento em que a guerra na Ucrânia completa dois meses, vale, portanto, passar os olhos pelas páginas de “O choque de civilizações”.

De acordo com a teoria de Huntington, os Estados são e continuarão a ser os atores mais importantes nos assuntos mundiais. Porém, seus interesses, associações e conflitos devem ser cada vez mais moldados por fatores culturais e civilizacionais.

Neste contexto, a Ucrânia é um caso a ser observado. Maior e mais importante ex-república soviética - excluindo, claro, a própria Rússia -, a Ucrânia é descrita por Huntington como um país rachado, com duas culturas distintas. A fratura entre o Ocidente e a civilização ortodoxa, diz o cientista político, ocorre através do coração da Ucrânia: em uma linha a leste da capital, Kiev, a qual estaria posicionada do “lado ocidental”.

Em sua história, a Ucrânia ocidental foi parte da Polônia, da Lituânia e do Império AustroHúngaro. Uma grande parcela da população pertence à Igreja Uniata, que pratica ritos ortodoxos, mas, ao mesmo tempo, reconhece a autoridade do papa. Em geral, aponta o autor, os ucranianos ocidentais buscam falar sua própria língua e têm adotado um comportamento nacionalista. Por outro lado, escreve, as pessoas da Ucrânia oriental são predominantemente ortodoxas e falam russo. Não teriam, segundo esta teoria, problemas em ver Moscou como o núcleo de um bloco ortodoxo.

A consolidação desse bloco seria justamente o objetivo russo. Já em 1996 o livro apontava que a situação entre Ucrânia e Rússia estava suficientemente madura para a eclosão de um “surto” de competição por segurança entre os dois países.

A partir dessa constatação, três cenários foram desenhados. No primeiro, o Ocidente apoiaria claramente a Ucrânia em sua defesa. Pelo menos por enquanto, os principais países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ainda o fazem de forma indireta.

Outra possibilidade, considerada a mais provável pelo autor e que pode estar equivocada, é que a Ucrânia permanecerá, sim, rachada do ponto de vista civilizacional. Mas com seu atual território mantido na íntegra, independente e cooperando de forma estreita com a Rússia. Difícil.

O cenário intermediário seria a cisão da Ucrânia seguindo sua linha de fratura civilizacional. A entidade oriental poderia fundir-se com a Rússia. É sobre isso que falava aquele general citado pelo autor e, de fato, recentes movimentos do exército russo têm se concentrado na parte oriental da Ucrânia - sua área de maior influência cultural.

É preciso aguardar. Enquanto isso, um integrante da ala pragmática do governo explica a transição na política externa e os votos do país na ONU. “O Brasil votou de acordo com aquilo que são os nossos parâmetros, que também são os parâmetros do sistema internacional - o respeito à soberania dos países, a não intervenção e a solução pacífica dos conflitos. O Brasil tem que ser pragmático e também tem que ser flexível nesta situação toda”, diz a fonte.

“Estamos nos dirigindo a um momento que o mundo vai ficar dividido nesses dois polos: o polo democrático e o polo autoritário. Talvez a gente enverede por uma nova Guerra Fria. Tem gente que diz que a Guerra Fria não acabou, que ela sempre continuou. O Brasil é um país continental, democrático, e nós temos negócios com o outro lado. A gente tem que saber como se equilibrar. Nós não podemos queimar pontes.

Vez ou outra circulam informações de que podem ocorrer novas mudanças no Itamaraty até o fim do ano. No Palácio, essas notícias são relativizadas. Outras áreas do governo as classificam de especulações. O que se descarta por todos os lados, contudo, é a reconquista da pasta pela ala ideológica.


Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras
Trabalhou nas redações de “Investnews”, “Gazeta Mercantil”, “Jornal do Brasil”, “Reuters” e “Veja”. Entrou no Valor em 2011, e desde 2013 é coordenador digital
E-mail: fernando.exman@valor.com.br

https://valor.globo.com/politica/coluna/guerra-expoe-a-forca-da-ala-realista-do-governo.ghtml