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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Alain Peyrefitte, Meira Penna e o Mal Latino - Carlos U. Pozzobon, Paulo Roberto de Almeida

 Transcrevo, abaixo, nesta ordem, minha introdução no Facebook à postagem que fiz desta longa matéria que capturei  do grande intelectual e leitor voraz Carlos Pozzobon sobre o intelectual francês Alain Peyrefitte, seguida de considerações intermediárias não constantes do FB, para finalmente reproduzir a matéria de Pozzobon, que republica enorme artigo do embaixador Meira Penna sobre Peyrefitte.

1) Do FB de Paulo Roberto de Almeida:

Excepcional postagem de Carlos U. Pozzobon, transcrevendo artigo de 1999, do saudoso embaixador José Oswaldo de Meira Penna, que por sua vez analisa obras e o pensamento de Alain Peyrefitte, um excepcional intelectual francês que se situa na tradição de Tocqueville e de Max Weber. Minha primeira missão formal na diplomacia brasileira foi ter servido de acompanhante e intérprete a Alain Peyrefitte quando de sua viagem como ministro francês da Justiça, acompanhando a visita oficial do presidente Giscard D’Estaing ao Brasil em 1978. 

Falarei mais sobre essa visita, e sobre o artigo de Meira Penna na transcrição desta matéria em postagem de meu blog Diplomatizzando.

2) Considerações intermediárias:

Em 1977, eu havia recém voltado de um longo exílio na Europa, durante os momentos mais duros da ditadura militar, a qual eu havia combatido no Brasil e no exterior. Resolvi fazer o concurso do Itamaraty, entre outras razões para ver como andava minha ficha no SNI, depois de quase sete anos escrevendo e atuando, sob outros nomes, contra o regime militar. Fui ajudado pelo meu excelente Francês, e por isso me designaram, ainda como terceiro secretário, para ser o acompanhante do ministro Peyrefitte, como informei acima. 

A embaixada francesa cometeu um equívoco ao programar uma reunião de trabalho entre o “ministre de l’Intérieur et Garde des Sceaux” (ministro da Justiça) ao ministro brasileiro do Interior, que nada mais era do que o ministro do Desenvolvimento Regional. A visita principal foi feita ao ministro brasileiro Armando (“Nada a Declarar”) Falcão, um político esperto, mas muito ignorante. Ambos ministros ficaram bastante contentes com meu trabalho de interpretação simultânea, em lugar daquelas interrupções para síntese do que foi dito. Nas etapas de carro oficial, entre uma visita e outra, almoços e recepção oficial no Itamaraty (para a qual comprei um Smoking que só usei uma única vez na vida, a da visita de Giscard), eu ia explicando a Peyrefitte como era o Brasil real, bem diferente da propaganda oficial e ufanista do regime militar, e acredito que ele tenha gostado, pois me elogiou no momento da despedida na Base Militar. Pouco depois da visita encomendei a um colega na Europa um ou dois livros de Peyrefitte.

Sobre o excepcional artigo de Meira Penna dedicado ao grande intelectual francês — a quem só fui conhecer pessoalmente quande minha volta do doutorado e da primeira saída em missão, em 1985, mas já tendo escrito a ele quando ainda era embaixador na Polônia, que eu cobria em meu primeiro serviço no Itamaraty —, eu só discordo de sua visão de Pinochet, um bárbaro militar traidor, que tem muito muito pouco a ver com a transição do Chile a uma economia de melhor qualidade nas políticas públicas, o que só foi obtido depois de algum tempo de percalços na caminhada do país para um tipo de política econômica mais liberal. Como a maior parte dos militares obtusos em economia, o assassino Pinochet tinha uma concepção nazista da economia, feita de preço controlados  e intervenção do Estado na atividade empresarial. Depois de uma crise econômica e da persistência da inflação, e de uma visita de Milton Friedman ao Chile, a convite de ex-alunos de Chicago, professores na Universidad Catolica, Pinochet rendeu-se aos conselhos de alguns empresários para adotar um outro tipo de política econômica, e foi daí que veio o crescimento estilo tigres asiáticos.

No mais estou perfeitamente de acordo com o longo artigo de Meira Penna, que não conhecia, sobre Peyrefitte, com meus enfáticos agradecimentos ao Carlos Pozzobon por tê-lo trazido à tona. Vou buscar na minha caótica biblioteca os livros de Meira Penna e de Peyrefitte e colocá-los juntos.

3) Agora, o menu principal:

12 de fevereiro de 2021

Alain Peyrefitte e a Sociedade de Confiança 

J. O. DE MEIRA PENNA 

Foi diplomata e escreveu livros importantes sobre o Brasil, especialmente Em Berço Explêndido e Opção Preferencial Pela Riqueza, ambos comentados no blog Fragmentos do menu Livros e Mais Livros. Foi aluno e discípulo de Jung na Suíça, e seus livros sempre são introduzidos pelo método da psicologia analítica de seu mestre. Por isso, sua compreensão de nossa herança cultural baseada nos valores da Contra-Reforma são fundamentais para o conhecimento da Identidade Brasileira tanto cultural quanto de nosso psiquismo carregado de atavismos antimodernos. Nascido em 1917 e falecido aos 100 anos de idade, deixou muitos admiradores no meio intelectual brasileiro e seguramente é uma das referências nacionais nos assuntos do século XX. 

A morte de amigos e pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua última obra, o terceiro volume de C'Était De Gaulle

Escritor, político ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação excepcional daquele ideal platônico, tão frequentemente frustrado, de filósofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional. 

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn, na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995. 

Como um dos mais fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem violência. 

Foi como ministro da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d'Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina. 

Tocqueville e Weber 

Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura sociopolítica o motivo das suspeitas de que alimentasse convicções huguenotes. 

Peyrefitte, infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S. Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião, acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou. 

Paixão de aprender 

Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da "paixão de aprender", Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973, parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine s_Éveillera... le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin. 

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilhão de pessoas. 

Teimosia oriental

O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe dominante imperial manchu. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios chineses àquela missão diplomática sui-generis — que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu, obrigatórias para os representantes dos vassalos. 

Surpresa 

Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping — e a flexibilidade com que, em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora "a China acorda para fazer tremer o mundo", a origem do descompasso se coloca nas peripécias dessa missão diplomática. 

Criminalidade

O quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladoga — la Justice entre les Extrêmes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas — antecipando a ideia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e, finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução primorosa de Cylene Bittencourt. 

Comentemos a questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das celebrizações de economistas e sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o "milagre brasileiro" da década dos 70 que desembocou na "década perdida" dos 80, e os "dominós" asiáticos que se tornaram "dínamos". 

A pergunta levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política, graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registrou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento acelerado, que a "crise" atual não parece haver senão temporariamente interrompido. 

Um caso particular que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo ("O Estado sou Eu") herdado do Rei Sol, Luís XIV. 

Para a integração profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são definidos como as causas da riqueza coletiva — não havendo outras. 

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de penetrar no "mistério" ou "milagre" do desenvolvimento (uma de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação, em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 

Falsidades perversas 

A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se esgotar — e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 — em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso. 

No livro, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a "divergência" religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados — e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho. 

Questão de confiança

A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transação econômica? 

O descompasso histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética tridentina sob a qual fomos educados e sofremos. 

Introversão

Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana. 

Os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento. 

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão do livro, a "confiança na confiança". Peyrefitte é otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à superação dos traços culturais viciosos que configuram o "mal francês". Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da língua e cultura francesas. 


Publicado em O Estado de S. Paulo, Domingo, 19 de dezembro de 1999


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sábado, 20 de janeiro de 2018

Uma aula de Paulo Kramer sobre patrimonialismo e a corrupcao do PT

Patrimonialismo tradicional brasileiro e corrupção petista: uma lição de Paulo Kramer

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: considerações sobre patrimonialismo e corrupção; finalidade: introduzir um texto de Paulo Kramer sobre os dois fenômenos no Brasil]


Introdução
Concordo inteiramente com a lição de Paulo Kramer abaixo transcrita: existe uma diferença fundamental, essencial, entre, por um lado, a corrupção "normal" do sistema político, pervasiva, resiliente, tradicional entre os todos os partidos políticos, entre todos os caciques do velho sistema, e a corrupção sistêmica, "científica", organizada no modo bolchevique, do PT e sua liderança mafiosa (um pouco como era o partido nazista na Alemanha hitlerista).
A diferença, para mim (PRA), é esta: enquanto a corrupção tradicional se faz, na terminologia marxista, pelo velho "modo artesanal de produção da corrupção", ou seja, em caráter individual, oportunista, usando os recursos habituais da classe política para assaltar o Estado – emendas parlamentares, superfaturamento em despesas governamentais locais, achaque a empresas que serão protegidas depois, caixa 2 como sempre se fez, já a corrupção no universo petista, ou petralha, se faz pelo "modo industrial de produção da corrupção", sistêmica, organizada, cientificamente organizada pelo partido neobolchevique, destinada não apenas ao enriquecimento individual dos líderes mafiosos, mas correspondendo igualmente, e talvez principalmente, a um projeto coletivo, partidário, de monopólio do poder, o que se dá não apenas pelo assalto a TODOS os recursos do Estado, onde estiverem, mas pelo achaque e a extorsão direta, organizada das empresas, TODAS as empresas, públicas e privadas. Onde houver um emprendimento qualquer, os petralhas irão lá arrancar dinheiro para si e para a causa.
Qual é a causa?
Ora, a manutenção do poder, a todo custo.
Os petistas, os petralhas, os mafiosos do partido neobolchevique não estão minimamente interessados em "construir o socialismo", de qualquer século, do XIX ao XXI, como tentaram fazer os idiotas do socialismo bolivariano chavista, com isso mergulhando a pobre Venezuela na maior crise de sua história. Não, eles têm todo o interesse em preservar o capitalismo, pois sabem que o socialismo é sinônimo de miséria, de pobreza. Eles só querem extorquir os capitalistas – industriais e banqueiros – e viver às custas deles, ou seja, preservando o capitalismo, mas cobrando um alto preço deles e de toda a sociedade, extorquindo TODOS os produtores de riqueza na sua sanha predatória.
Mas vamos ler a lição de Paulo Kramer.


Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de janeiro de 2018

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Patrimonialismo

Paulo Kramer

Um amigo me perguntou: "Mas, afinal, qual a diferença entre o PT e os outros partidos?" Respondi assim:
Oi, meu caro! Grato pela oportunidade, e vamos lá:
1) Ao contrário da maioria dos meus amigos e conhecidos que ficaram decepcionados e indignados quando começaram a vir à tona os primeiros podres do governo lulopetista, não fiquei nem uma coisa, nem outra, porque já estava cansado de saber, por estudo e observação própria, que a esquerda não democrática É, SEMPRE FOI, NUNCA DEIXARÁ DE SER P-A-T-R-I-M-O-N-I-A-L-I-S-T-A: aqui, em Cuba, na antiga União Soviética e nos seus satélites do Leste europeu, na China, na Venezuela, enfim, em qualquer lugar do mundo seja qual for a época. E, se alguém ainda nutria dúvidas sobre isso, foi porque nunca se deu o trabalho de perceber quais os países que a petralhada sempre teve como modelos.
2) O lulopetismo inventou o patrimonialismo? Claro que não, assim como Ayrton Senna não foi o inventor do automobilismo... Aliás, patrimonialista (i. e., predadora dos recursos públicos para engordar o patrimônio pessoal ou familiar) é toda a nossa cultura política. Patrimonialismo significa sempre e necessariamente atraso e miséria? Não, o patrimonialismo apresenta versões modernizadoras (Marquês de Pombal, em Portugal; Getúlio Vargas e regime militar no Brasil; Pedro, o Grande na Rússia etc., etc., etc.). Agora, corrupto, sempre; base de um regime político e econômico em que o Estado é mais forte que a sociedade, fazendo da segunda refém do primeiro, sempre também.
3) TODOS OS PARTIDOS POLÍTICOS BRASILEIROS SÃO PATRIMONIALISTAS, porque patrimonialista é essa matriz socioeconômica e política comum a cada um deles. Mas, então, em que o lulopetismo se distingue deles? Tentarei esclarecer: os outros partidos que formam a 'base parlamentar aliada' de qualquer governo agem como quadrilhas relativamente independentes (é o grupo do deputado X na previdência, é a panelinha do senador Y no setor elétrico, é o 'esquema' do ministro ou governador Z nesta ou naquela estatal... Enfim, cada quadrilha roubando para enriquecer os clãs familiares e políticos encastelados nas cúpulas dos diferentes partidos, mas que, em razão desse mesmo caráter descentralizado da roubalheira, jamais teve força suficiente, muito menos projeto consistente, para substituir o regime democrático (com todos os defeitos e limitações deste) por um sistema mais monopolizador do poder, de tipo ostensivo (regimes de partido único, a exemplo de Cuba, URSS etc) ou disfarçado (como os governos do PRI mexicano durante sete décadas a fio -- uma única legenda com efetivo controle das alavancas do poder [na mão direita, o Diário Oficial; na esquerda, os sindicatos e movimentos sociais corrompidos e domesticados ], em torno da qual gravitam partidecos sustentamos pelas migalhas caídas da mesa do banquete da sigla hegemônica).
4) O lulopetismo foi o único a atrever-se a um projeto centralizado, tentacular, onipresente de corrupção a serviço da eternização no poder. Nas condições atuais do mundo e do Brasil, o modelo mais viável não seria o despotismo de partido único, mas sim o hegemonismo à la PRI mexicano. 
Entendem a diferença? Para os outros clãs partidários e eleitorais, a corrupção era/é um fim em si; para o PT, um meio de eternizar-se no poder.
5) Liberais no Ministério da Fazenda, conforme o script esboçado na Carta ao Povo Brasileira (que prefiro chamar de documento sossega-banqueiro) que Lula divulgou em plena campanha de 2002, com texto de Antonio Palocci. Lembrar que, naquele momento,  a tensão pré-eleitoral estava nas alturas, com o dólar encostando em 4 reais, justamente pelo temor do mercado de que Lula e PT, se/quando chegassem ao poder cumpririam tudo aquilo que prometiam desde a fundação do partido, isto é, a implantação de um regime socialista à la Cuba, ou Angola, ou qualquer outro modelo acalentado por amantes do totalitarismo como Zé Dirceu. Por isso, depois de ganhar aquela primeira eleição, a política econômica do primeiro mandato de Lula seria impecavelmente ortodoxa, fincada no tripé câmbio flutuante, metas inflacionárias e responsabilidade fiscal. Atribuo a manutenção do Meirelles durante oito anos à frente do Banco Central como fruto da superior compreensão do ex-pobre Lula de que as maiores vítimas da inflação são os pobres, que, ao contrário das classes média e alta,  não podem se refugiar em aplicações financeiras indexadas; para o assalariado ou biscateiro pobre, num contexto de inflação alta, o dinheiro vira pó assim que é recebido...
6) No fundo, os lulopetistas jamais se converteram à economia de mercado, permanecendo fiéis ao besteirol intervencionista e estatizante que nem ao menos chega ser original, já que herdado das ditaduras estado-novista e militar. O disfarce liberal ortodoxo da política econômica do primeiro mandato não tardaria a ser abandonado, sob o estímulo de três fatores conjunturais: a maré de prosperidade ensejada pelo boom internacional dos preços das commodities agropecuárias e minerais; o advento da Grande Recessão mundial em 2008/2009, que reanimou as velhas e nunca preenchidas expectativas da esquerda de um colapso planetário e final  do capitalismo; e a descoberta do pré-sal, que, na cabecinha dessa gente, soou como senha para mandar às favas a responsabilidade fiscal e todo aquele receituário econômico 'de direita'.  E vamos enfiar cada vez mais grana no rabo de Joesleys e Eikes, que aventureiros como eles eram os grandes financiadores das campanhas do PT, além de fontes aparentemente inesgotáveis de propina. A esse trinômio, eu acrescentaria uma quarta  eventualidade decisiva para compreender a regressão da política econômica na passagem do 1º para o 2º mandato de Lula: a derrocada do Palocci com o escândalo caseiro-gate. Ele era um dos únicos da cúpula lulopetista a compreender a superioridade infinita da economia de mercado sobre todos os modelos alternativos e, se tivesse a coragem e a lucidez  de livrar-se do abraço sedutor, paralisante e delinquente do patrimonialismo, estaria em condições de liderar a transição do PT do socialismo populista, atrasado, para-bolivariano etc., rumo à socialdemocracia moderna, respeitadora das cláusulas pétreas da economia de mercado e do regime representativo.

Quem quiser saber mais, deve ler, do meu mestre e amigo ANTONIO PAIM, um dos maiores pensadores brasileiros vivos: Momentos Decisivos da História do Brasil; Marxismo e Descendência; O Liberalismo Contemporâneo (3ª edição); A Querela do Estatismo (2ª edição) e O Relativo Atraso Brasileiro e sua Difícil Superação; do saudoso diplomata, humanista e psicólogo junguiano José Osvaldo de Meira Penna: Em Berço Esplêndido e O Dinossauro; e, do historiador das ideias Ricardo Vélez Rodríguez (o mais brilhante discípulo de Antônio Paim): A Grande Mentira.

Um última observação sobre POPULISMO e PATRIMONIALISMO: nem todo patrimonialismo é populista, mas todo populismo é patrimonialista. Demagogos inescrupulosos como Lula exploram as fragilidades intelectuais e a imaturidade cívica de culturas políticas como a nossa, nas quais o entroncamento da herança contra-reformista ibérica com o positivismo de cunho religioso (ração ideológica da qual se fartaram o pensamento militar republicano e o caudilhismo gaúcho de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Leonel Brizola) e o marxismo mais rastaquera formaram o caldo de cultura do coitadismo mais nocivo. Esses falsos messias sabem que, no Brasil e em Nuestra América de maneira geral, basta afetar e exibir esse falso sentimento de compaixão pelos pobres para receber de amplas parcelas da opinião pública, a começar pelos estamentos intelectuais e artísticos um amplo salvo conduto para saquear o erário é enriquecer à custa do suor do contribuinte. 

Paulo Kramer
Brasília, 19 de janeiro de 2018.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Meira Penna: o mais longevo liberal brasileiro - Podcast do Instituto Mises Brasil

PODCAST 101 - J. O. DE MEIRA PENNA

Nascido num país onde a liberdade nunca foi um dado cultural e justamente no ano da revolução bolchevique em 1917, José Osvaldo de Meira Penna se transformou num ícone das ideias da liberdade no Brasil. Diplomata de carreira, Meira Penna construiu uma vida intelectual brilhante com livros fundamentais para entender o Brasil, como Em Berço Esplêndido - Ensaios de psicologia coletiva brasileira, Opção Preferencial Pela Riqueza, O Brasil na Idade da Razão e O Dinossauro. Aos 96 anos, Meira Penna talvez seja o mais longevo liberal brasileiro.

Lúcido e ativo, Meira Penna concedeu esta entrevista histórica ao Podcast do Instituto Mises Brasil para contar uma parte de sua vida e ideias, que também são parte da história do liberalismo no Brasil. Nesta conversa, realizada graças à ajuda valiosa de Bráulio Porto de Matos, Luiz Jardim e Daniel Marchi, o embaixador aposentado conta por que se tornou um liberal, quais foram os primeiros autores que leu, o encontro com Hayek no Brasil e o ingresso na, e as reuniões da, Mont Pelerin Society.

Ele também explicou a concepção psicológica do brasileiro, elaborada a partir das teses de C. G. Jung, a influência do positivismo na política nacional, e a ausência, desde a colonização, de um ambiente favorável à livre iniciativa devido à ausência de capitalismo, resistências burocráticas, patrimonialismo, escravidão, nacionalismo míope e ressentido, elementos que ajudam a explicar a relação de dependência e servidão de parte da sociedade brasileira em relação ao governo e a própria atuação das instituições políticas.

É uma honra para este Podcast compartilhar a entrevista com os ouvintes.


Com vocês, J. O. de Meira Penna

domingo, 30 de junho de 2013

Emir dos Crentes: nao se trata de alguem das Arabias, mas do Brasil marquissista e cubanista

Um texto do Embaixador Meira Penna (já antigo, mas ainda plenamente válido) sobre um representante de uma tropa que já mereceu o galardão de Imbecil Coletivo, em épocas passadas. Desde então, só piorou.
Grato a um leitor deste blog que me chamou a atenção para este artigo, colocado no site do promotor do prêmio.
Paulo Roberto de Almeida

Maniqueísmo, ignorância e mendacidade
J. O. de Meira Penna
Jornal da Tarde27 de dezembro de 1999

Numa de suas obras principais, A Nova Ciência da Política, atribui Eric Voegelin a Dario Hystapis, o xá que fundou o Império persa no 5.° século antes de Cristo, a primazia de um fenômeno ominoso que perdurou até nosso século. Após haver sido integrado à civilização ocidental, ele constitui, na verdade, a essência da Ideologia, essa "religião civil" de nossa época. Trata-se da iniciativa do rei Aquemênida de atribuir a si próprio a defesa do Bem e da Verdade, projetando sobre seus adversários, quaisquer que fossem, a pecha de serem os defensores da mentira e do mal. O origem dessa dicotomia ética aplicada à política se encontra no próprio dualismo original da religião dos iranianos, desde que seu fundador, Zarathushtra ou Zoroastro, cindiu em dois a divindade, concedendo a Ormudz ou Ahura Mazda as qualidades de bondade e veracidade, a ele opondo Arihman, o "grande satã", deus do mal e da mentira. O dualismo transcendente tomaria uma forma mais pronunciada nos ensinamentos de um outro profeta, Mani ou Manichaeus, que viveu 800 anos depois e influenciou as seitas gnósticas de princípios de nossa era. Fundador de uma religião conhecida como maniqueísmo, Mani contaminou de mitologia mágica dualística todas as heresias que ameaçariam a ortodoxia católica na Idade Média, Cátaros, Albigenses, etc. Não nos esqueçamos que S. Agostinho, o maior filósofo cristão, professou o maniqueísmo em sua mocidade, a tal ponto que muitos críticos reconhecem em sua teologia reminiscências do dualismo ético, tão entranhado agora na mente humana que é difícil dele nos libertarmos.
Foi Agostinho, no entanto, quem melhor desenvolveu a interpretação correta que S. Paulo fez do Evangelho de Cristo, segundo a qual é em nós mesmos que devemos procurar a oposição entre o Bem e o Mal. No maniqueísmo, ao contrário, somos nós, seus professos, donos da verdade e da justiça, enquanto detestáveis são aqueles que não pensam como nós porque portadores da maldade e da mentira. É fácil avaliar a importância dessa psicopatologia na postura do ideólogo moderno, fiel ao cego dogmatismo de suas mais estapafúrdias doutrinas e sempre disposto a acusar de mentiroso, injusto, perverso e egoísta seus adversários. A dialética do Bem e do Mal que o maniqueísmo provoca leva o alegado defensor da Verdade a recorrer a qualquer instrumento para eliminar o Outro. A faca do assassino (do árabe hashishim, comedor de haxixe), os fogos da Inquisição, o Gulag e Auschwitz, a bomba terrorista da "guerra santa" dos aiatolás, o tiro na nuca no porão do KGB e o paredón para punir o traidor vendido aos interesses alienígenas, tornaram-se banais em nossa época. Orwell descreveu magnificamente o "duplo-pensar" totalitário que justifica o crime. O ideólogo pensa estar defendendo a justiça e a verdade, de tal modo que a prisão moscovita se transforma em "amorzinho" (Lubianka) e o genocídio é a justa recompensa dos "capitalistas burgueses". Voegelin descobre traços do processo psicopatológico que cinde a realidade histórica, necessariamente complexa e cinzenta, na simplicidade dualística do branco X preto ou, como se prefere hoje dizer, da "esquerda" e "direita". O nazismo e o marxismo, em suas várias vertentes, são as manifestações mais clamorosas da enfermidade mental. Claro. O nacionalismo xenófobo se tornou, porém, a partir da 1.ª Guerra Mundial, a expressão coletiva mais banal da esquizofrenia paranóica. A corrupção da verdade em seu oposto, a Grande Mentira dialética, é também suscetível de ser diagnosticada como Pseudologia Epidêmica ou Pseudodoxia Fantástica. Assim como o católico atribuía ao protestante todos os males, o nazista os atribui aos judeus, o marxista aos liberais e o latino patrioteiro aos americanos.
As observações acima vêm a propósito da ira incontida, verdadeira rebordosa histérica que maltrata os "esquerdistas" (chamêmo-los assim, já que tanto apreciam esse grotesco termo jacobino) diante do colapso da URSS, da queda do Muro de Berlim e do fenômeno da globalização, aparentemente irreversível. A adoção quase universal das receitas liberais, mesmo pelos partidos tidos como de "esquerda", o Labour de Mr. Blair, a Gauche de Monsieur Jospin, o regime de Deng Xiaoping e Jiang Zemin (Dois Sistemas, Um Só País), a "Concertación de Izquierda" do Chile, o Justicialismo argentino e mesmo, entre nós, o PSDB de FHC – se traduz por programas de abertura ao mercado global e privatizações. Assim mesmo, o annus mirabilis de 1989 (saudemos essa data maior do século 20!) concedeu a esse pessoal um tempo suficiente para que se recomponham. Afinal de contas, a revolução liberal foi uma "revolução de veludo", como a denominou o presidente checo Vaclav Havel. Os liberais, não somos vingativos, reconhecemos nossos próprios defeitos e insuficiências, não absolutizamos nossas idéias, reconhecemos que elas evoluem e se integram em outras receitas. Se tivéssemos imitado Lenin, Stalin, Hitler, Mao ou Fidel Castro, os socialistas que escapassem do paredón ou da bala na nuca estariam hoje encerrados todos num Gulag apropriado, maior do que a ilha de Cuba. Ao invés, eles voltaram ao poder sob títulos diversos. São "populistas", "petistas", "social-democratas" ou "socialistas cristãos". Agarram-se aos cargos e mordomias. Escrevem nas folhas mais conservadoras do País. Colaboram com os mais opulentos bilionários. Chamam Roberto Campos de Bob Fields. E até mesmo o senador Roberto Freire é convidado de honra num simpósio da Fundação Konrad Adenauer (ó manes do der Alte!).
No Brasil, é mais óbvio seu descaramento. Um exemplo supino é o do Emir dos Crentes, mais conhecido como professor Sader. Perdoe-me esse eminente "sociólogo" levantino e guru do PT se lhe renovo o merecido galardão, do "Prêmio Imbecil Coletivo de 1996", a ele concedido por Olavo de Carvalho. Suas idéias são bastante características. Definem o mecanismo de transferência de culpa, dialética mendaz, deslealdade e cínica hipocrisia "xiita" (mas será que o professor é sunita?). Um exemplo é a tentativa de contrapor ao "Livro Negro do Comunismo" (cem milhões de mortes) um pseudo "Livro Negro do Capitalismo". Ao denunciar o "desconhecimento da história", indigitar o "pensamento único" e utilizar o truque de interpretar de modo estreitíssimo os dogmas marxistas-leninistas, ele atribui a 1.ª Guerra Mundial (20 milhões de mortes) ao capitalismo. Admiravelmente simples! Só que em 1914 a França e a Grã-Bretanha eram governados por partidos de esquerda – os dois líderes, René Viviani e Clemenceau, ambos socialistas, e Lloyd George um liberal de esquerda apoiado pelo Labour. Um único prestigioso socialista se opôs ao conflito, Jean Jaurès, e foi assassinado por ser germanófilo. O reich bismarckiano era, similarmente, dirigido pelos social-democratas e, dos dois lados da cerca, todos os socialistas aplaudiram e votaram os orçamentos de guerra de seus respectivos governos. O mesmo em 1939. Atribuir ao "Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães", os Nazistas de Hitler, um vezo "capitalista" é uma aberração da inteligência. Em 1939, capitalistas eram os judeus... Todos os liberais austríacos e alemães que, no pós-guerra, iriam erguer a "economia social de mercado" e promover o "milagre alemão", homens como Adenauer, Eucken, Machlup, Ludwig Erhard, von Mises e Hayek, se encontravam no ostracismo, na cadeia ou no exílio.
Mas porventura os militares nipônicos que, em 1932, invadiram a Manchúria, em 1937 a China, promoveram o rapto de Nanking e, em 1941, bombardearam Pearl Harbor seriam também burgueses capitalistas? E o Pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939, que desencadeou a guerra (50 milhões de mortes) permitindo a Hitler liquidar separadamente com a Polônia, a Escandinávia e a França, enquanto Stalin, o outro parceiro, se locupletava com a outra fatia da Polônia, os Estados bálticos e a Finlândia – foi por acaso firmado por capitalistas burgueses? E como foi mantido e se expandiu o Império soviético (60 milhões de vítimas)? Quem invadiu a Coréia do Sul em 1950, o Tibet em 1951 e a Índia setentrional em 1963? Não foi o Vietnã de Ho Chimin que assolou a Kampuchea democrática (um milhão de mortes) e entrou em guerra com a China maoísta em 1979? Não foi o Iraque que atacou o Irã e a URSS que ocupou o Afeganistão? E a Iugoslávia de Milosevitch não era comunista quando se desintegrou em sangrenta guerra civil (300 mil mortos)? O ilustre Emir dos Crentes deve aprender história no curso primário antes de escrever "Em Defesa da História" nos jornais burgueses de Brasília, Rio e São Paulo, essas mesmas folhas que acusa de colaborarem no "festival do pensamento único que assola nossa imprensa". Mas talvez tenha razão: o festival de pensamento único que assola nossa imprensa e o "clima de impunidade" com idéias estrambólicas é a mesma orgia ideológica de que o comendador está, precisamente, gozando com seus comparsas...
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J.O. de Meira Penna é embaixador, escritor e presidente do Instituto Liberal de Brasília.

domingo, 23 de junho de 2013

Elite predatoria: quem sao os que a integram, como vivem eles - Jose Oswaldo de Meira Penna

Um excelente artigo do embaixador aposentado Meira Penna sobre o verdadeiro significado, e a composição real das elites predatórias brasileiras, quase todas concentradas no setor público, algumas vivendo a sua sombra. Ele ainda minimizou o número de "representantes" do povo, e obviamente descurou os milhares de nababos que vivem em volta deles.
Agradeço ao Kleber Pires a postagem deste artigo no seu blog Libertatum.
Paulo Roberto de Almeida

Elite Predatória
A qual elite deve ser aplicado esse conceito?

José Osvaldo de Meira Penna
Blog Libertatum, 23/06/2013

O conceito admirável de "elite predatória" foi lançado pelo ilustre presidente do PT, dr. José Genoíno, e a ele já tive ocasião de me referir anteriormente. A idéia de ser o Brasil governado por uma elite predatória é politicamente correta, havendo apenas discrepâncias sobre o verdadeiro sentido da expressão. Indubitavelmente, é o nosso país dominado por uma certa casta cujo caráter "predatório" pode ser julgado de maneira diversa, conforme nos alinhemos por preconceitos coletivistas; por interesses corporativistas ou por idéias liberais concernentes às vantagens de um "Estado Mínimo" onde possa ser limitada a capacidade da aludida elite de exercer sua atividade nefasta. Outra certeza que se me impõe é que tanto José Genoíno como este seu amigo a ela (elite) pertencemos - ele, como político militante: eu, como funcionário público aposentado. O conceito corresponde estritamente à noção de "patrimonialismo" de Max Weber.


Patrimonialista é a sociedade em que o Estado precede ou se coloca acima do grupo social cuja segurança, ordem pública e legitimidade deve garantir. No patrimonialismo, a sociedade serve e financia o Estado, em vez do que geralmente ocorre numa sociedade democrática livre e séria, do tipo racional-legal. Ora, sempre foi o predomínio do Estado predador uma característica distintiva da sociedade brasileira, desde o desembarque luso na Terra dos Papagaios. Fato inédito na História universal: o Brasil já se tornara patrimônio da Coroa portuguesa em 1494, antes mesmo de ser "descoberto". Lembrem-se que o primeiro documento oficial de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, continha um pormenor tipicamente patrimonialista: o pedido do missivista ao venturoso d. Manuel para que a um parente seu presenteasse com um emprego. Daí por diante, capitães gerais, vice-reis, governadores, ministros e funcionários que se seguiram, ao longo dos séculos, não foram escolhidos entre os súditos da coroa em virtude de um sistema "contratualista", propriamente meritocrático, mas por indicação do soberano. O teste do Quociente de Inteligência (QI), para recrutamento da "elite", funciona aqui, principalmente, pelo sistema definido na expressão galhofeira "Quem Indicou".

O soberano, seja ele rei, imperador, ditador ou presidente, é essencialmente, aquele que distribui prebendas e empregos. O contraste é grande com o modo como se formaram, por exemplo, os Estados Unidos da América. Ali, salvo algumas exceções como o Maryland e a Virginia, os Estados se constituíram espontaneamente por imigrantes europeus que, democraticamente, determinavam suas instituições governamentais. A tradição era antiga. Vinha da Magna Carta de 1215 e das várias "revoluções" que estabeleceram o princípio "não há taxação sem representação". O controle dos impostos pelos representantes do povo - no taxation without representation - é essencial num regime democrático "representativo". Os americanos se rebelaram e, em 1776, proclamaram a independência exatamente porque o governo londrino taxara seu consumo de chá e sal, sem que gozassem de representação no Parlamento de Londres que lhes impunha o peso fiscal. Aliás, no próprio Brasil, nossa primeira tentativa, na Inconfidência de Ouro Preto, se originou no desejo de não alimentarmos o famigerado apetite da Coroa portuguesa pelo ouro das Minas Gerais.

Em 1808, foi o Brasil invadido por uma chusma de nobres e burocratas lisboetas que acompanhavam d. João VI. O filho desse monarca vitoriosamente proclamou a Independência e assegurou a unidade do nosso extenso Berço Esplêndido sem que, no entanto, jamais um regime representativo, liberal democrático, houvesse fincado raízes profundas de natureza contratualista. As coisas, aqui, sempre tenderam para a manutenção de uma economia política mercantilista e patrimonialista. O 15 de Novembro reforçou a tentação autoritária da tese positivista relativa à "Ditadura Republicana" e, em 1930, uma falsa "revolução liberal" impôs concretamente o domínio personalista de Getúlio Vargas que duraria 15 anos. O regime militar de 1964, depois de uma frustrada tentativa liberal sob o governo Castello Branco e a administração técnica de Bulhões e Roberto Campos, degenerou na paranóia estatizante de Ernesto Geisel - tendo sido o monstruoso dinossauro assim criado legitimado na Constituição dos "miseráveis" do "dr." Ulysses, um bando patético de bem-intencionados e românticos legiferantes que encheu a Carta Magna de absurdos e contraditórios "direitos", tendentes a estimular o apetite do Leviatã.

Inspirado em Oliveira Vianna, Ricardo Vélez Rodríguez descreve o Estado brasileiro, por esse motivo, como "orçamentívoro". Em vez do ímpeto liberal de reduzir os impostos, na base do não há taxação sem representação, os legisladores e governadores brasileiros tendem, invariavelmente, a aumentá-los. A carga já teria ultrapassado um terço do PIB, obrigando o Executivo a conter a fúria perdulária que se traduz em inflação, esbanjando perversa e arbitrariamente os recursos assim disponíveis. Os "servidores", em número excessivo, recebem seus salários, mas os serviços públicos são péssimos. O País progride lentamente graças ao ingente esforço do setor privado, assoberbado pelo chamado "custo Brasil". É a tendência oposta à que deveria orientar uma democracia verdadeiramente progressista, liberal e representativa, razão pela qual não se engana o dr. Genoíno, "olá, companheiro!", ao se referir à elite governante como predatória.

Mas a que se destina a opressora carga tributária? Uma parte mínima a manter serviços públicos monopolistas que dificilmente poderiam caber ao setor privado da economia. O maior peso é representado pelo sustento da "Nova Classe Ociosa" de políticos e burocratas que a guarnecem. Os "Donos do Poder" (Faoro e Schwarzman) e seus subalternos consideram o patrimônio público como "Coisa Nossa" (Oliveiros Ferreira). Pouco produzem e, na verdade, só discursos, papéis e carimbos - e, em muitos casos, apenas consomem. Falam grandiloqüentemente em "justiça social", mas de tal maneira que o Estado acaba se transformando no que Octavio Paz qualificava como um "Ogro Filantrópico" - sendo o produto da filantropia consumido internamente. Assim prosperam os "marajás" - membros do que, na antiga URSS, se denominava a Nomenklatura. O País já teria ido à falência não fossem os empresários "capitalistas", isto é, justamente aquela classe "burguesa" que, galharda e desesperadamente, resiste à "opção preferencial" pelo enriquecimento dos 10 ou 12 milhões de membros do setor público.

Quem são estes? São os membros dos Três Poderes federais - 500 deputados, 70 senadores, milhares de juízes, governadores, ministros, generais, almirantes, embaixadores, 6 mil prefeitos e respectivos abundantes secretários, 2 mil ou 3 mil deputados estaduais, 60 mil vereadores - enfim, um número indeterminado de "altos funcionários" com DAS, além de uma multidão incalculável de barnabés e Marias Candelárias, com seus dependentes, na ativa ou aposentados - o número exato sendo desconhecido precisamente porque não interessa ao IBGE (por motivos óbvios) recenseá-los como tal. A lei da omertà é estrita e não perdoa. Falo com conhecimento de causa, pois, há 65 anos, sou membro da aludida classe e sei que é perigoso abrir o bico.

A parte superior da classe dominante consumidora - o cérebro minúsculo do gigantesco brontossauro - é uma coterie ou uma patota que se locupleta com alta remuneração por ela mesmo fixada (e sempre tendente a aumentar). É uma "famiglia" de formação semelhante à que, há séculos, cresceu no fértil solo da Sicília. Ela goza de privilégios especiais contra o Estado de Direito que impera nas democracias liberais. Alguns exemplos. Segundo um editorial do JB (7/11/2001), um deputado federal ganha R$ 1.332.000 por ano e um senador da República, R$ 25.560.000, o que inclui salários, casa, domésticos, luz, água, telefone, assessores (grande parte da própria família), passagens aéreas, automóveis, viagens ao exterior com diárias, etc. O privilégio comporta, ainda, o de ficar acima da lei. O jovem assassino do índio pataxó, filho de um magistrado de Brasília, classificado em 65° lugar em concurso (coitadinho!) foi contratado para o tribunal pelo próprio pai com um salário de R$ 1.300, embora só houvesse 12 vagas (Correio Braziliense, 22/12/01). Esse tipo de Justiça, em termos "minervinos", demonstra que a desigualdade que contamina toda a estrutura social brasileira não resulta do poder econômico, mas sim do poder político. Outro exemplo é o do artigo da Constituição que estabelece "todos são iguais perante a lei" e todos têm "direito à saúde" (art.196). Façam um cálculo e considerem se os 174 milhões de brasileiros podem gozar do mesmo grau de tratamento intensivo em hospital de elite que foi dispensado ao presidente Tancredo Neves e ao governador Covas, em suas moléstias fatais.


Sejamos realistas! Se há discrepâncias na repartição dos benefícios sociais que favorecem a Nomenklatura, torna-se mais fácil a definição de quem compõe a "elite predatória" brasileira: não são os que pagam os impostos, mas os que vivem do produto dos impostos pagos pelos outros."