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domingo, 11 de março de 2018

The Mismeasure of Man, Stephen Jay Gould - Book review, Paulo Roberto de Almeida

Sugestão aos Editores, Revista Humanidades, UnB

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 fevereiro 1987, 3 pp.
revista Humanidades
(Brasília, Ano IV, nº 14, agosto-outubro 1987, pp. 125-126).

Stephen Jay GOULD:
The Mismeasure of Man
New York and London: W. W. Norton and Company, 1981.



Se não estou errado, nenhum livro do geólogo e biólogo norte-americano Stephen Jay Gould foi ainda traduzido e editado no Brasil, o que é, a todos os títulos, lamentável. Geólogo de formação, o mais famoso dos "darwinistas" norte-americanos ensina essa disciplina, além de Biologia e História da Ciência, na Universidade de Harvard, detendo um currículo já impressionante de publicações. Os títulos de seus livros são por si sós indicativos de sua preocupação em ultrapassar a estrita barreira da especialização científica para alcançar um público mais amplo e diversificado: Ever Since Darwin, The Panda's Thumb, Hen’s Teeth and Horse’s Toes e, mais recentemente, The Flamingo Smile. O livro que agora se sugere aos editores brasileiros foi publicado logo após que The Panda’s Thumb foi agraciado com o "American Book Award for Science" de 1981 e dá continuidade aos esforços de Gould em ultrapassar as fronteiras da historia natural e penetrar nas areias movediças da história social. Esse tipo de bridge-building, característico de todos os trabalhos de Gould, e particularmente ressaltado neste ensaio sobre a "má medida" do homem, ou seja, a tentativa de classificar os grupos humanos através de pretensos critérios da objetividade cientifica.
A preocupação em hierarquizar os homens em função de características ditas "inatas", conformando uma espécie de "racismo cientifico", parece hoje ter assumido a vestimenta da Sociobiologia, cujos argumentos são facilmente desmontados por Gould. No passado, o "determinismo biológico" procurou medir a inteligência através de dois métodos que atingiram uma certa respeitabilidade em cada época. No século XIX, os "homens de ciência" desenvolveram a "craniometria", manipulando medições de cérebros e crâneos humanos apenas para "provar" que os negros e outros povos primitivos seriam naturalmente inferiores aos homens brancos. Alguns chegaram mesmo a ver na menor capacidade craniana da mulher, comparativamente à do homem, a justificativa natural de sua subordinação social. Já no século XX, o sistema classificatório assume a forma dos "testes de inteligência", que transformaram as medidas de QI em marketing de massa. Em ambos os casos, argumenta Gould, assistiu-se à abstração e à reificação da inteligência humana, transformando-a numa entidade singularmente individualizada, localizada no cérebro.
A mismeasure, criticada no livro de Gould, é assim uma prática "científica" de medição da inteligência humana, através de critérios quantitativos pretensamente objetivos, e a utilização dos números então obtidos para classificar e hierarquizar grupos humanos segundo uma escala valorativa, tendente a "demonstrar" que grupos subalternos – em termos de raça, classe ou sexo –são inatamente inferiores e merecem o status que tem. Gould demonstra, por seu lado, a debilidade científica e o contexto claramente político e social dos argumentos deterministas em biologia, criticando ao mesmo tempo o mito da Ciência como um empreendimento objetivo. A ciência, nas palavras de Gould, tem de ser vista e compreendida como um fenômeno social, um empreendimento humano, e não uma obra de robôs programados para coletar informação pura.
Ao contrário do que pretende a Sociobiologia, a biologia moderna provou, em notável refutação ao determinismo biológico, que o estoque genético é muito pouco diferenciado para todos os grupos humanos. Mas, este é um fato contingente da evolução natural e não uma verdade a priori ou necessária. Como afirma Gould, o mundo poderia ter conhecido uma ordem natural diferente: "Suponha, por exemplo, que uma das muitas espécies do nosso gênero ancestral Australopithecus tivesse sobrevivido – um cenário perfeitamente razoável teoricamente, já que as novas espécies emergem a partir da divisão das antigas (com as antecessoras normalmente sobrevivendo, pelo menos durante algum tempo), não pela transformação em massa dos ancestrais em seus descendentes. Nós – isto é, o Homo sapiens – teríamos então de nos defrontar com todos os dilemas morais decorrentes do relacionamento com espécies humanas de capacidade mental notoriamente inferior. O que teríamos feito com elas escravidão? extinção? coexistência? trabalho doméstico? reservas? zoológicos?
Da mesma forma, a nossa própria espécie, Homo sapiens, poderia ter incluído uma serie de subespécies (raças) com capacidades genéticas compreensivelmente diferentes. Se as espécies humanas fossem velhas de milhões de anos (algumas são) e se suas raças tivessem estado geograficamente separadas durante a maior parte desse tempo sem um intercâmbio genético significativo, então grandes diferenças genéticas se teriam lentamente acumulado entre os grupos. Mas, o Homo sapiens é velho de várias dezenas de milhares de anos, ou no máximo de algumas poucas centenas de milhares de anos, e todas as modernas raças humanas provavelmente se dividiram a partir de um ancestral comum há apenas algumas dezenas de milhares de anos atrás.
Uns poucos traços significativos de diferenças externas nos levou ao julgamento subjetivo da existência de grandes diferenças entre elas. Mas, os biologistas confirmaram recentemente que o conjunto das diferenças genéticas entre as raças humanas é incrivelmente pequeno. Apesar da frequência para diferentes estados de um gene diferir entre as raças, nós não encontramos "genes raciais"—isto é, características fixas em certas raças e ausentes em todas as outras" (pp.322-3).
A especificidade humana é primordialmente constituída pelo funcionamento do cérebro e as sociedades humanas mudam por evolução cultural e não como resultado da alteração biológica. Não há nenhuma evidência de uma mudança biológica na estrutura ou dimensão do cérebro desde que o Homo sapiens apareceu nos registros fósseis há cerca de 50 mil anos atrás. Assim, "a evolução biológica (darwiniana) continua em nossa espécie, mas o seu ritmo, comparado com a evolução cultural, é tão incomparavelmente lento que o seu impacto na história do Homo sapiens tem sido pequeno" (324).
A evolução cultural é assim a marca característica dos grupos humanos, e a transmissão cultural funda um novo tipo de evolução muito mais efetivo do que o darwiniano. Gould resume: "Os argumentos clássicos do determinismo biológico são deficientes porque as características que ele invoca para estabelecer distinções entre os grupos são na verdade o produto da evolução cultural" (325).
O desmascaramento da Sociobiologia é feito, no livro de Gould, em tom sereno, próprio a um darwinista tranquilo, em contraste com a atitude passional, enragée e pouco cientifica dos sociobiologistas. Trata-se, sem duvida alguma, de um grande mergulho na história dos preconceitos "científicos" dos últimos dois séculos, uma leitura, portanto, indispensável a todos aqueles que se interessam por nosso humilde destino de Homo sapiens.

Paulo Roberto de Almeida
Departamento de Sociologia – UnB 

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