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sexta-feira, 16 de março de 2018

Cooperacao cientifica Brasil-Franca: estado da arte em 1989 - Resenha de livro, PRAlmeida

Vinte Anos de Cooperação Científica Brasil-França

Resenha de livro:
Guy Martinière/Luiz Claudio Cardoso (coords):
France-Brésil: Vingt Ans de Coopération (Science et Technologie)
(Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1989, 352p.; Collection “Travaux et Mémoires” de l’Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine, n° 44, Série Essai nº 4)


Desde sua constituição, em 1985, o “Projeto França-Brasil” havia logrado a realização de alguns bons espetáculos, aqui e lá, permitido o início da restauração dos parcos vestígios da presença francesa em nossas terras e, sobretudo, estimulado uma intensa movimentação de autoridades governamentais e de personalidades dos dois lados do Atlântico, burocratas, políticos, artistas e acadêmicos confundidos. Se a maior parte das manifestações teve caráter efêmero, em que pese sua natureza por vezes espetacular (stricto et lato sensi), temos agora a primeira evidência “material” da intensidade das relações culturais e científicas entre os dois países, sob a forma de um livro de testemunhos dos agentes humanos e institucionais engajados nesse relacionamento, verdadeira “memória coletiva” de vinte anos de cooperação científica e tecnológica entre o Brasil e a França.
O volume, editado na França pelo Professor Guy Martinière, do Instituto de Altos Estudos da América Latina (estando sua publicação no Brasil sob a responsabilidade do Itamaraty), realiza uma vasta síntese da cooperação científica e tecnológica empreendida desde longos anos pelas principais agências e instituições envolvidos nesse intercâmbio, precedida de depoimentos ilustrativos de personalidades vinculadas à cooperação franco-brasileira desde a assinatura do acordo bilateral, em finais dos anos sessenta. Um dos anexos do livro contém aliás a lista cronológica dos principais acordos de cooperação e entendimentos complementares entre instituições brasileiras e francesas entre a data de assinatura do acordo científico-tecnológico, em 16 de janeiro de 1967, e 31 de dezembro de 1987: os instrumentos mais relevantes, firmados entre 1978 e 1982, referem-se à formação de recursos humanos, à pesquisa e desenvolvimento agronômicos, bem como a atividades espaciais, oceanográficas, de saúde e de metrologia.
A primeira parte da obra, sob a responsabilidade dos ministérios das relações exteriores dos dois países, tem caráter meramente introdutório (seis páginas), mas permite, ainda assim, algumas constatações interessantes. O Brasil ocupa, de longe, o primeiro lugar da América Latina no esforço francês de cooperação científica e tecnológica externa e situa-se como o quarto parceiro da França, em termos mundiais, depois dos três países árabes do norte da África (excluída a África negra de expressão francesa, em seu conjunto). A introdução brasileira, bem mais elaborada em termos históricos e conceituais, não deixa de lembrar as contribuições pioneiras de André Thévet e de Auguste de Saint-Hilaire para o conhecimento da flora, da fauna e da etnologia do Brasil colonial e independente. Igualmente, o potencial brasileiro em ciências físicas (mineralogia, por exemplo) e biológicas foi em grande parte o resultado de uma longa colaboração, oficial ou espontânea, com a França. Na primeira metade deste século, por outro lado, a criação da Universidade de São Paulo recebeu, como é sabido, uma contribuição decisiva da parte de inúmeros cientistas sociais e pesquisadores franceses.   
Não seria, assim, exagerado dizer que o Brasil está irremediavelmente ligado à elaboração da “antropologia estrutural” de Claude Lévi-Strauss, às reflexões sobre relações raciais de Roger Bastide, ao itinerário do “comércio atlântico” de Fréderic Mauro e ao conceito de “economia-mundo” de Fernand Braudel, modelos e tipologias que tanto iriam influenciar os professores e estudantes brasileiros nas diversas áreas das ciências humanas. Da mesma forma, o “observador” beneficiou-se da aproximação: o Brasil forneceu a “matéria-prima” para os estudos de geografia humana de Pierre Monbeig, de movimentos sindicais nos trabalhos de Alain Touraine, dos problemas demográficos, urbanos e sociais nas análises sobre o desenvolvimento do Padre J. Lebret, bem como a matéria- prima tout court para tantos outros pesquisadores e cientistas franceses.
A segunda parte do livro compõe-se de uma série de catorze depoimentos de personalidades francesas e brasileiras (sete para cada lado) e constitui, por assim dizer, a parte mais “saborosa” da obra, pelo menos em comparação com a descrição mais ou menos “árida” das atividades das instituições científicas engajadas na cooperação bilateral, feita na terceira parte. Os testemunhos contemporâneos são encerrados por um “anexo especial”, que é a transcrição do capítulo inicial de “Tristes Trópicos” de Lévi-Strauss (publicado originalmente em 1955), onde o célèbre ethnologue, antes de contar suas expedições ao Brasil indígena, começa por dizer que “odeia as viagens e os exploradores”.
As 76 páginas de depoimentos pessoais são evidentemente desiguais em conteúdo e em densidade de informação, mas permitem ainda assim traçar um panorama bastante claro da intensidade de contatos humanos e científicos entre as duas comunidades acadêmicas, inclusive com diversos prolongamentos anteriores aos últimos vinte anos, período mais especificamente analisado na descrição “institucional” da terceira parte. De uma forma geral, o que poderia ser chamado de “etapa heroica” do relacionamento científico Brasil-França - basicamente o período formador da Universidade brasileira - é caracterizado por uma relação unilateral de cooperação, consistindo no “fornecimento” constante e continuado de jovens professores universitários franceses para cobrir as lacunas humanas e a sede intelectual de um corpo discente e professoral ávido pela haute culture e pelos avanços científicos da recherche française. Em contraste com a intensa “importação” de cérebros e de conhecimentos dos primeiros anos, o período recente já registra uma relação mais equilibrada no intercâmbio cultural entre os dois países. 
Os depoimentos são abertos, significativamente, por um Rapport sur les professeurs français, cobrindo o período de 1934 a 1987, escrito conjuntamente pelos professores José Ribeiro de Araujo Filho, Aziz Simão e Eduardo d'Oliveira França, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o centro acadêmico que primeiro recebeu os “mensageiros da cultura europeia” em terras brasileiras. Dessa presença pioneira resultaram um profundo attachement da maior parte dos intelectuais brasileiros pela produção acadêmica francesa, assim como, reciprocamente, diversas liaisons affectives (senão dangereuses) de jovens professores franceses pelas coisas e pessoas do Brasil. A vinda, em princípios dos anos cinquenta para uma conferência, do historiador Lucien Febvre serviu, por exemplo, para o lançamento da Revista de História, fundada sob a influência direta dos franceses, concretizando assim a filiação metodológica com a orientação historiográfica da revista Annales (fundada por Febvre e Marc Bloch em 1929), deixada em semente alguns anos antes por Braudel.
O cientista Carlos Chagas oferece, em seu depoimento intitulado “uma visão pessoal da cooperação científica entre a França e o Brasil de 1758 a 1966”, um verdadeiro passeio pela história das ciências no Brasil. Começando pela viagem de La Condamine pelos rios Solimões e Amazonas, da qual iriam resultar interessantes observações sobre a fauna e a flora dessa região, relatadas em seu livro Relation abrégée d'un voyage fait dans l'intérieur de l'Amérique méridionale (1745), Chagas relembra, entre outros exemplos, o impacto do modelo francês na criação, por D. Pedro II, da Escola de Minas de Ouro Preto e do Observatório Nacional, a influência decisiva para a carreira de Oswaldo Cruz de seu estágio no Instituto Pasteur (1896) e o eco imenso aqui encontrado pelas ideias de Auguste Comte.
Diversos outros depoimentos, brasileiros e franceses, permitem recuperar parte da memória histórica coletiva sobre passagens por vezes esquecidas do processo de formação da comunidade científica no Brasil. Jacques Danon (que, apesar do nome, é brasileiro) retoma alguns “episódios significativos” sobre a colaboração com a França no setor da mineralogia. José Leite Lopes, por sua vez, após sublinhar a importância da cooperação bilateral no terreno da física, sugere a criação de uma estrutura permanente, uma espécie de “instituto de altos estudos científicos Brasil-França, sem pesos ou entraves burocráticos, dirigido pelas comissões científicas dos dois países, renovadas periodicamente, capaz de agir nas diferentes regiões do Brasil e de coordenar os programas e visitas em estrita associação com os serviços de cooperação científica e cultural das embaixadas e dos ministérios das Relações Exteriores e de Ciência e Tecnologia dos dois países” (p. 51-52).
Paulo Sérgio Pinheiro, em “Mai 1988, vingt ans après...”, ao relembrar seus anos de bolsista do governo francês e sua double allégeance a “Sciences Po” e ao espírito de maio de 1968, descreve o clima de fermentação intelectual em que viviam tantos brasileiros - exilados ou não - a partir do cadinho político e intelectual que tinha seu centro em Paris. Orlando Valverde, um dos fundadores do Conselho Nacional de Geografia do IBGE, retraça a formação do ensino universitário de geografia no Brasil, através notadamente das figuras de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, e observa que a geografia, uma “ciência alemã” em suas origens, tendo Humboldt e Ritter como fundadores, encontrou nos maîtres français seus primeiros professores na América Latina, no Brasil em particular. José Israel Vargas, finalmente, limita seu testemunho sobre a cooperação científica e tecnológica Brasil-França envolvendo pessoas e instituições de Minas Gerais, entre 1964 e 1979, experiência particularmente ativa em termos de estágios e estudos de pós-graduação junto ao Centro de Estudos Nucleares de Grenoble.
Do lado francês, merecem relevância os depoimentos de Fréderic Mauro, no que se refere ao esprit des Annales, de Charles Mérieux sobre a “biocooperação” em matéria de vacinas e virologia, de Jean Delhaye sobre os progressos da astronomia brasileira, de Jean-Pierre Halévy sobre a “arquitetura e a invenção do Brasil”, e de Denis Vialou sobre a cooperação franco-brasileira na pesquisa da pré-história. Dois outros testemunhos - o de Michel Paty, sobre a epistemologia e a história das ciências, e o de Paul Hagenmuller, sobre a pesquisa em química inorgânica - completam essa parte do livro.
A terceira parte traz, ao longo de 202 páginas, um relato pormenorizado da atuação das instituições e organismos franceses e brasileiros envolvidos no esforço de cooperação científica e tecnológica, constituindo-se num manancial precioso de referência sobre todos os instrumentos nacionais disponíveis para as atividades de cooperação nessa área. A contribuição dos quinze órgãos franceses resenhados é examinada em detalhe, muitas vezes com a lista das atividades de pesquisa científica empreendida conjuntamente com os parceiros brasileiros, dos conferencistas enviados ou dos doutorandos brasileiros. Acrescente-se ainda o relato da ação de comitês binacionais como o GRESIL - Groupe Grenoble-Brésil - ou de instituições de coordenação como o CNRS (equivalente do nosso CNPq) ou o COFECUB - Comité Français d'évaluation de la coopération universitaire avec le Brésil - que, ao abrigo de um acordo-quadro de cooperação interuniversitária, mantém um intenso programa de formação e treinamento com a CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
Do lado brasileiro, são apresentadas quinze instituições de pesquisa e de formação de pessoal especializado, com uma ficha técnica sobre cada uma delas (especialmente útil para visualizar a estrutura interna, a competência setorial e suas orientações de trabalho) e, onde couber, a lista de projetos realizados ou em curso e das publicações resultantes da cooperação com os respectivos parceiros franceses. Merecem referência especial os capítulos dedicados ao Centro Técnico Aeroespacial, ao CNPq (no que se refere, por exemplo, aos estudos de pré-história no Piauí e à revisão “revolucionária” da cronologia da ocupação do Novo Mundo pelo homem), à EMBRAPA, ao INPA e ao INPE (cooperação em meteorologia e tecnologia espacial).
O livro traz ainda em anexo os textos dos acordos culturais em vigor, desde o pioneiro de 1948 até o “Projeto França-Brasil” de 1985. Dois utilíssimos index, dos nomes das instituições e das personalidades citadas, completam a obra. Sem constituir propriamente um trabalho de avaliação qualitativa - de acordo com critérios “objetivos” de aferição da produção acadêmica empreendida conjuntamente e a partir de uma metodologia adequada - do esforço de cooperação científica e tecnológica engajado com a França nas últimas décadas, o trabalho dá uma visão muito clara das affinités électives entre as instituições francesas e brasileiras de pesquisa e permite, aos responsáveis políticos e acadêmicos, traçar com muito maior segurança os caminhos futuros de uma cooperação ampliada nesse setor.

 [Genebra, 04/02/1990]

[Publicado em Ciência e Cultura (São Paulo, vol. 42, n. 5/6, maio/junho 1990, pp. 405-408); Relação de Trabalhos n. 117; Relação de Publicados n. 057]

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