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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Magna Carta: seu significado para a atualidade - entrevista Paulo R. Almeida (Radio Transmundial)

Acabo de dar uma entrevista, muito curta, de apenas 10 ou 12 minutos, para a Rádio Transmundial, de São Paulo.
Eles queriam saber sobre a Magna Carta, o que foi, o que representou para a época, seus efeitos e o que representa hoje, para o mundo e para o próprio Brasil.
Como eles me mandaram as perguntas ontem, tinha preparado algumas notas, mais ou menos organizadas, em torno dessas perguntas, que transcrevo abaixo.
No meio da entrevista também teve perguntas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e sobre direitos humanos, em geral, que não figuram no texto abaixo, pois não fui avisado devidamente.
Nem tudo o que vai escrito abaixo foi lido, obviamente, mas como me perguntaram onde os ouvintes poderiam ter mais informações sobre esse tema, indiquei este blog Diplomatizzando como a fonte desses materiais.
Além deste meu texto, gostaria de indicar esta outra postagem, que fiz no ano passado, como sendo a base do meu conhecimento sobre a Magna Carta:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/magna-carta-800-anos-de-afirmacao-de.html
No começo deste ano de 2015, fui a Washington, especialmente para visitar uma exposição sobre os 800 anos da Magna Carta na Biblioteca do Congresso, a Library of Congress, onde eu gostaria de morar, se fosse possível.
Enquanto isto não é possível, fiquem com este texto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de maio de 2015
PS.: A entrevista foi gravada para o programa "Fique Por Dentro", mas o aúdio, que recebi por email, ainda não se encontra disponível no site, que é o seguinte: http://www.transmundial.org.br/interna/radio/fique-por-dentro




Magna Carta para os nossos tempos

Paulo Roberto de Almeida
Notas para entrevista ao vivo na Rádio TransMundial;
Programa Fique por Dentro; 29/05/2015; 8h35;
Rádio Trans Mundial: 

1) O que é a Magna Carta?
No dia 15 de junho de 1215, nas planícies de Runymede, não muito longe de onde se situa o Castelo de Windsor atualmente, uma assembleia de barões feudais confrontava um soberano despótico, o rei João, que vivia querendo cobrar mais impostos de seus súditos para financiar a suas guerras na França. Os barões obrigaram o rei a assinar um documento reconhecendo os seus direitos, que eram tradicionais na Inglaterra medieval, e assim nasceu a Magna Carta, um espécie de carta-compromisso, ou um memorando de entendimento, que depois de assinada pelo rei foi enviada a todos os homens livres para ser lida e ver consagrados esses direitos.
Essa não foi todavia a versão definitiva da Magna Carta, mas apenas uma reafirmação do compromisso que tinha sido assumido pelo pai de João, Henrique II, que havia assegurado que não imporia mais tributos sobre os nobres sem o consentimento deles. Houve uma segunda versão, aprovada no dia 19, onde o termo barões foi substituído por “homens livres”, uma disposição muito importante, que teria consequências, 650 anos mais tarde na Nova Inglaterra, as colônias americanas que se rebelaram contra os impostos do rei George, precipitando a independência dos EUA.
O rei João morreu em 1216, e para assegurar o trono para seu filho de 9 anos, Henrique III, uma nova versão da Magna Carta foi elaborada, com algumas novas provisões, garantindo os mesmos direitos. Quando o jovem rei assumiu o controle definitivo do trono, em 1225, uma última versão da Carta foi produzida, e é essa versão que subsistiu até nossos dias, incorporada nos princípios constitucionais ingleses e americanos. Esses princípios foram ainda usados na revolução inglesa do século 17, contra o rei Jaime I, que acabou sendo decapitado pelo parlamento, uma vez que demonstrava as mesmas tentações despóticas que seu predecessor do século 13. E foi esse renascimento da Magna Carta, durante a Revolução Inglesa que inspirou os colonos americanos a também declararem sua independência da metrópole, como homens livres. O Bill of Rights, a Declaração de Direitos da Inglaterra, de 1689, derivada da segunda revolução, dita Gloriosa, que derrubou o último rei Tudor, Jaime II, e que importou uma nova dinastia do continente para governar a Inglaterra, também influenciou os colonos americanos a exigirem a sua declaração de direitos um século mais tarde.

2) Qual era o momento politico que antecedeu à sua criação?
João, dito João Sem Terras (John LackLand), era o quarto filho de Henrique II, que não tinha mais terras para dividir entre seus herdeiros, e acabou passando a João um vago domínio que tinha sobre terras no atual território francês. Ele passou metade de sua vida adulta tentando garantir a posse dessas terras, e para isso tinha de mobilizar os barões ingleses e os seus servos para partirem para custosas guerras na França. Seu irmão mais velho, Ricardo, dito Coração de Leão, tinha herdado a maior parte de suas propriedades do país, mas no final do século 12, em 1188, tinha partido para a Terceira Cruzada, e passou longos anos tentando recuperar Jerusalém de Saladin, o guerreiro muçulmano que tinha conquistado a cidade santa. Com a morte de Ricardo, em 1199, João se torna o rei da Inglaterra, até a sua morte, em 1216, mas como seu irmão, passa grande parte do tempo fora da Inglaterra, lutando para conquistar ou assegurar suas terras na França. Ele começou a taxar pesadamente seus súditos, inclusive o próprio clero e a Igreja, o que causou a revolta geral.

3) E depois? O que ela ocasionou?
O que caracteriza a Magna Carta e a distingue como documento historicamente fundador de todas as democracias modernas? Ela contém muitos dispositivos, mas os principais são estes.
1) Ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei. Todos devem responder judicialmente por infrações à lei, independentemente do seu status ou condição social, ou até mesmo de suas funções governamentais.
2) Ninguém pode ser processado ou condenado sem o devido processo legal.
3) O rei não pode tributar os seus súditos sem o consentimento deles.
Em outros termos, trata-se de um compromisso entre o soberano e seus súditos, para que seu poder seja reconhecido como legítimo. Ela é a base do constitucionalismo moderno, ainda que anglo-saxão, que é diferente do nosso tipo de constitucionalismo, de base continental europeia. Esse tipo de compromisso inglês é muito usado no seu direito consuetudinário, ou seja, o customs law, não escrito, o direito tradicional que é ferrenhamente defendido no mundo anglo-saxão. A Inglaterra é a mais antiga democracia em funcionamento no mundo, e não tem Constituição escrita. É claro que nem tudo estava na Magna Carta, mas ela foi a base, também, do Bill of Rights, de 1689, que persiste até hoje, e que instituiu o princípio de que o rei reina, mas não governa. A governança é deixada ao Parlamento.

4) Qual a sua importância e o seu conteúdo?
Sua importância é fundamental, sobretudo para o mundo anglo-saxônico. Quando falamos de democracia, no Brasil, temos um entendimento que se poderia chamar de superestrutural, ou seja, a tradicional repartição de poderes para o funcionamento do Estado. Democracia para os anglo-saxões é algo muito mais infraestrutural, ou sistêmico, compreendendo direitos fundamentais para homens livres, e garantindo que o Estado esteja a seu serviço, não estes a serviço do Estado. Essa diferença é fundamental.
Qual o mais importante direito garantido pelos homens livres contra o poder arbitrário do rei João? O de que nenhum governante tem o direito de impor tributos sem o consentimento dos governados, ou seja, daqueles que criam riquezas e que são justamente taxados em favor desses governantes. Aliás, não deveria ser assim: impostos devem servir, antes de mais nada, para o oferecimento de serviços públicos, aqueles mais essenciais: segurança cidadã, justiça pública, defesa da nação, relações exteriores, educação básica e algumas obras de infraestrutura (embora estas também possam ser feitas pela iniciativa privada).
A participação dos cidadãos, por meio de representantes eleitos, na fixação dos tipos de receitas, na definição dos seus níveis de imposição, ou alíquotas, bem como na decisão sobre como serão gastas essas receitas, é absolutamente indispensável, e nenhuma democracia digna desse nome se entende sem que a criação de riqueza e sua apropriação pelos governantes escape ao exame dos cidadãos. No Brasil, parece que essa característica fundamental da arte de governar ainda não se encontra bem assente, ou é simplesmente ignorada; aqui se costuma criar contribuições, aumentar impostos, corrigir para cima alíquotas, tarifas e todos os tipos de taxas sem sequer se dignar a fornecer explicações aos governados, os criadores de riqueza e pagadores de impostos. Não é por outro motivo que os países anglo-saxões – ou seja, a Grã-Bretanha, ou Reino Unido, em primeiro lugar, os Estados Unidos, em segundo e mais importante lugar, mas também países como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia – são as democracias mais antigas e mais sólidas do mundo, e estão também entre os países mais prósperos, mais inovadores, onde o meio ambiente para negócios é o mais acolhedor em todo o mundo. A Índia atual é inconcebível sem algumas das tradições inglesas mais relevantes, entre elas o governo parlamentar, a justiça independente e a propensão à criação de riqueza.
Tudo começou bem lá atrás, quando os homens livres impuseram ao soberano a limitação ao poder de tributar sem o consentimento  dos governados. A função essencial de todos os parlamentos dignos desse nome é justamente esta: discutir e aprovar uma peça orçamentária, transformá-la em lei e vigiar para que ela seja integralmente cumprida no seguimento de sua promulgação enquanto lei. Poucos países no mundo ousariam considerar a lei orçamentária meramente autorizativa. A Magna Carta foi feita justamente para que o rei não estabelecesse ele mesmo os limites e o alcance das receitas públicas e decidisse sozinho sobre o seu dispêndio: o parlamento tem nesse rito seu ato mais relevante entre todas as suas outras atribuições. Ocorre que no Brasil o próprio parlamento conspurca o sentido do planejamento orçamentário, ao fazer, a cada ano, estimativas exageradas quanto às receitas esperadas, apenas para poder introduzir emendas paroquiais nas previsões de despesa. E, em nenhum lugar do mundo, se constitucionalizou a obrigação de que essas emendas, feitas ao arrepio da peça orçamentária original, sejam pagas com precedência sobre todas as demais, ou seja, que elas escapem do contingenciamento orçamentário, que, em si, já é um absurdo.

5) O que ela trouxe para os dias atuais?
Depende de que países e de quais contextos estamos falando. Se formos observar os países anglo-saxões, impossível não reconhecer que se trata das mais antigas e mais sólidas democracias de todo o mundo. Se formos atentar, por exemplo, para o princípio fundamental da Magna Carta, que é o governo pelas leis, não diretamente pelos homens, veremos que se trata de algo absolutamente revolucionário, para a Idade Média e mesmo para os dias de hoje. A limitação dos poderes do soberano, ou seja, do Estado, de sua capacidade de taxar abusivamente, o respeito à lei e ao devido processo legal, são absolutamente fundamentais para aquilo que os anglo-saxões chamam de accountability, ou seja, a responsabilização dos governantes em tudo aquilo e por tudo aquilo que diga respeito ao correto cumprimento da lei e o uso adequado dos recursos públicos, em absoluta transparência e prestação de contas para a população e, em primeiro lugar para os seus representantes, ou seja, os parlamentares.
No caso do Brasil, entretanto, isso ainda parece que não “pegou”, como se diz, mesmo 800 anos depois da Magna Carta: nossos governantes continuam a se julgar acima da lei; pior, se permitem fraudar a lei, e em muitos casos impunemente. Nossa democracia é de baixa qualidade, e falha em critérios fundamentais da Magna Carta.
O que falta para que o Brasil entre no espírito da Magna Carta? Falta aquilo que os próprios ingleses chamam de “accountability”, que é uma palavra que poderia ser funcionalmente traduzida como sendo “responsabilização”, ou seja, aquele que detém algum poder, algum mandato, uma responsabilidade sobre uma determinada área de interesse público, e sobretudo aquele que lida, manipula, intermedeia e define dotações obtidas com recursos capturados na comunidade de contribuintes compulsórios, esse alguém deve assumir responsabilidade por todas as operações efetuadas com esses recursos, que devem receber a maior transparência. Ele deve responder por tudo isso.
Como sabemos, na verdade, que essas coisas são difíceis de serem verificadas, a melhor solução, então, seria fazer com que um mínimo de recursos coletivos passasse pelas mãos do Estado. É uma evidência de senso comum que Estados muito grandes chamam naturalmente a corrupção, e não adianta introduzir mecanismos de verificação e de fiscalização, pois os espertos sempre vão encontrar uma maneira de burlar os controles. Então, quanto menos dinheiro passar pelas mãos do Estado, melhor. E quanto mais recursos próprios ficarem com os verdadeiros criadores de riquezas, que somos todos nós, melhor ainda.
Creio que esta é a mensagem da Magna Carta a todos nós, oitocentos anos depois que ela foi escrita. Claro que seus principais dispositivos têm a ver com a administração da Justiça, outro ponto extremamente controverso no Brasil, mas a principal questão, atualmente, é a do funcionamento da economia, dos impostos, da corrupção e a da má condução da política econômica. Por coincidência, os países mais prósperos do mundo, e os menos estatizados, são justamente aqueles que têm a Magna Carta como fonte inspiradora de sua organização institucional, ou até diretamente, como parte de seu ordenamento constitucional.
Seria coincidência, ou é mesmo uma das virtudes da Magna Carta a de prover um saudável equilíbrio entre os poderes dos governos e os deveres e os direitos dos governados? Creio que a resposta se impõe por si mesma...

Paulo Roberto de Almeida
Anápolis, 2826: 20 maio 2015, 3 p.; Brasília, 29 de maio de 2015, 5 p.  

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